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ALI KAMEL
DICIONÁRIO
LULA
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um cidadão que preza os valores tradicionais da família e de Deus; umfilho
legítimo do capitalismo que almeja para os outros a mobilidade social que
conseguiu para si (quando se tornou torneiro mecânico); um conciliador,
cujo objetivo, ao menos no nível da retórica, é alcançar a harmonia entre os
polos extremos da sociedade, tendo, para isso, como principal instrumento,
políticas assistencialistas. Essas características estão presentes em todos os
verbetes, e, nesta análise crítica, serão discutidas separadamente.
O comunicador
Mesmo entre os críticos mais ácidos de Lula, ninguém duvida de sua imen-
sa capacidade de comunicação. Esse é umdos mais relevantes traços do pre-
sidente: fazer-se entender demodo simples e eficaz, tanto pelo erudito quan-
to pelo iletrado. Pode-se discordar do que ele fala, mas não há como negar
que ele se comunica com extrema competência. Esta constatação não sur-
preende. A novidade que a leitura de seus discursos revela é que o “método
Lula de discursar”, que esmiuçaremos aqui, é absolutamente consciente.
Como se verá mais adiante, quase sempre Lula sabe o que faz, por que faz
e onde faz: seu objetivo é se comunicar com todos, mas, prioritariamente,
como “povão”, que compõe a massa de cidadãos. Para isso, Lula transforma
o que muitos veriam como deficiência – sua sintaxe popular e sua falta de
sofisticação gramatical – numa poderosa arma de comunicação.
Alguns poderão dizer que não haveria outra hipótese, dada a baixa esco-
laridade do presidente, mas estes se enganam. Lula poderia ter caído na ten-
tação de apenas ler discursos escritos por terceiros ou apelar para o que pode-
ríamos chamar de “odoricorização” (tendo emmente o personagem Odorico
Paraguaçu, da novela “O Bem-amado”, de Dias Gomes): tentar falar difícil sem
ter os pré-requisitos para tanto. Não, Lula evita os dois riscos, e, à vontade com
sua sintaxe, mostra-se como umdos mais eficazes comunicadores da história
política brasileira. Seu vocabulário hoje o ajuda: diferentemente do que mui-
tos imaginam, o presidente tem um repertório de palavras semelhante ao de
alguém com formação superior. Isso será mostrado mais à frente.
Nem sempre foi assim: quem se lembra do Lula candidato ao Governo
de São Paulo, em 1982, ou à Presidência da República, em 1989, nos debates,
comícios e entrevistas, sabe que essa é uma qualidade que ele aprimorou
ao longo dos anos. No último debate na disputa de 1989, contra Fernando
Collor, por exemplo, Lula tropeçou bastante ao responder a uma pergunta
sobre a proposta do presidente do PT do Paraná em relação à reforma agrá-
ria. Referiu-se a Collor como “meu candidato”, e disse, titubeante:
Depois dessa definição mais geral, seguiram-se 15 subverbetes, dos
quais reproduzo agora apenas dois:
... são ciumentos:
Eu, pelo menos, sou um homem de muitos amigos, eu gosto
de conviver com muita gente, eu sempre fui assim. E agora, muitas vezes, eu
passo o final de semana sozinho, eu e Marisa, porque não posso chamar uma
pessoa, que pode causar ciúmes a outra, que vai ficar reclamando. Então, você
termina se recolhendo sozinho.
(4/5/05, Brasília – DF. Entrevista aos jornalistas
franceses Slimane Zeghidour, da TV5, Pierre Ganz, da Rádio França Internacional, e
Olivier Royant, da revista
Paris Match
)
... suportam divergências:
Eu quero, do fundo do coração, meus companheiros,
dizer para vocês que eu sou um homem de muitos amigos. Durante a minha
vida inteira eu construí uma relação de amizade que eu tento fazer sólida, eu
nunca perdi a amizade de um companheiro porque ele divergiu de mim, por-
que não concordou comigo, porque está em outro partido ou porque torce para
outro time. Nunca. Eu levo bronca de alguém durante trinta segundos, depois
eu conto até dez. Eu acho que a vida é tão boa que não vale a pena a gente ficar
com raiva dos outros porque a gente vai ficando com azia, vai tendo má diges-
tão, vai tendo problema.
(18/4/05, São Bernardo do Campo – SP. Comemoração dos
30 anos da sua posse como presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC)
Na imensa maioria dos casos, os subverbetes não respeitam uma or-
dem cronológica, porque a prioridade foi dar uma ideia de conjunto: a in-
tenção é que, ao fim da leitura do verbete e dos subverbetes, o leitor tenha
a sensação de que leu um pequeno artigo sobre o tema, que vai do geral ao
específico. A cronologia só foi respeitada quando se percebeu uma mudan-
ça de opinião sobre o tema (ou a pessoa), na maior parte das vezes causada
pelo choque entre o discurso inicial e a realidade concreta.
O leitor se dará conta de que poderá ler o livro abrindo-o em qualquer
verbete: ali encontrará sempre uma estrutura fechada sobre algum tema e,
dele, poderá partir para qualquer outro. Um bom início talvez seja o verbe-
te “Lula”, uma autobiografia de 25 páginas, cujo início é a infância pobre, e
o final, o que ele antevê como o seu futuro: à luz deste, será mais fácil ver
nos outros verbetes as sutilezas contidas nas entrelinhas, quase sempre
determinadas pela história de vida do presidente. Trata-se, claro, de um
livro de referência, como todos os dicionários, para ser consultado na me-
dida da necessidade ou da curiosidade.
O Lula que emerge destas páginas é um comunicador sem igual; um ho-
mem que vê o mundo a partir de sua experiência concreta de vida, de uma
maneira que salta aos olhos; coerente, mas com incoerências importantes;
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