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ALI KAMEL
DICIONÁRIO
LULA
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tindo sobre uma variedade de assuntos desde que tomou posse em janeiro
de 2003. A segunda é, a partir dessa sistematização, mostrar o que Lula
diz, como diz e, em alguns casos, quando isso for possível, por que diz,
para que, por meio de suas palavras, um primeiro esboço do homem pú-
blico possa surgir. Esta segunda meta é a que apresento agora, neste texto
que antecede o dicionário propriamente dito. Trata-se de uma análise de
conteúdo, que eu poderia chamar de clássica, não fosse o fato de que o
método aqui aplicado, que será explicitado mais adiante, foi inteiramen-
te adaptado por mim. Aqui, evitei os jargões da disciplina, porque serei
sempre um jornalista e, também, para não afastar o público não especia-
lizado, a quem o trabalho se destina. Uma pequena bibliografia, em que
me baseei, está relacionada ao fim do livro.
Sobre o dicionário, é preciso ressalvar logo que tenho plena consciên­
cia de que serei capaz de mostrar o que Lula diz pensar sobre os mais varia-
dos temas e não exatamente o que ele pensa de fato desses mesmos temas.
A razão é singela: no momento, com as fontes de que dispomos, não há
como saber se o discurso dele é “verdadeiro”, se é sincero, num sentido ab-
solutamente lato: sincero tanto para ele próprio quanto para o público que
o ouve. Fazer tal averiguação dependerá essencialmente de um trabalho
junto a outras pessoas, a outros documentos. O que ele diz em público, ele
repete em privado? Há correspondência entre palavras e atos, entre fala
e atitude? É um trabalho de anos, que ocupará, como disse, algumas ge-
rações, e que dependerá de entrevistas com as pessoas que o cercam, da
análise objetiva dos resultados de seu Governo (comparativamente ao seu
discurso) e do acesso a documentos que hoje estão sob embargo.
O fascinante do trabalho, como disse, é que o volume de palavras que se
lê é de tal ordem que é possível afirmar com um alto grau de certeza o que
é episódico e o que é padrão. E, mesmo sem as outras fontes que mencionei
há pouco, o falar contínua e cotidianamente permite intuir, em alguns
casos, o que é dito de forma meramente protocolar, politicamente corre-
ta, e o que parece estar mais próximo das crenças e valores do presidente.
Não pretendi aqui fazer psicanálise, o que seria ridículo. Mas não foram
poucas as vezes em que, num discurso commenos freio, mais espontâneo,
emergiram momentos com um grau de sinceridade mais evidente. Nesta
análise crítica, terei oportunidade de dar alguns exemplos.
A tarefa de sistematizar o discurso do presidente em um dicionário
demandou um esforço enorme, e para isso contei com a ajuda inestimá-
vel do pesquisador Rodrigo Elias, historiador. A Presidência da República
Por que tanto interesse dos americanos pelo que dizem os seus presi-
dentes? Se, para muitos de nós, a pergunta pode soar pertinente, para os
estudiosos de lá ela não faria omenor sentido: há umconsenso em torno do
fato de que as palavras dos que governamajudamamoldar o país e a pôr em
prática, aperfeiçoar ou levar adiante um projeto de nação. Basta puxar pela
memória para se perceber como os presidentes, em seus discursos, buscam
respaldo no que disseramos seus predecessores que fizeramHistória, numa
linha que chega até os fundadores da pátria (“
The Founding Fathers
”): Geor-
ge Washington, John Adams, Thomas Jefferson, James Madison, Abraham
Lincoln, mas tambémWoodrowWilson, Franklin Roosevelt, John Kenne-
dy e Ronald Reagan. Eles quase sempre são mais lembrados pelo que dis-
seram do que pelo que fizeram, porque suas palavras ecoam os seus atos.
Mesmo os políticos postos em lugares menos nobres, porém, merecem es-
tudos aprofundados sobre o que disseram. A retórica de George W. Bush,
que mal deixou o poder, é já objeto de dezenas de artigos e alguns livros,
assim como a de Barack Obama, que nem bem assumiu o posto.
Não se trata de análises apenas sobre o estilo retórico deste ou daquele
presidente, mas de estudos que, a partir das palavras, tentam desvendar
o homem e o projeto de nação que está por trás dele. Mary E. Stuckey, em
seu livro
Defining Americans, The Presidency and National Identity
(
Definindo
os americanos, a Presidência e a identidade nacional
), diz: “Analisando a retó-
rica presidencial, é possível analisar a história da América de cima para
baixo, mas com a consciência de que esta é também a história de baixo
para cima.” Karlyn Kohrs Campbell e Katheleen Hall Jamieson, em
Deeds
Done InWords
(
Ações em palavras
), asseveram: “Presidentes habilidosos não
somente se adaptam a suas audiências; eles se lançam num processo de
transformar aqueles que os ouvem na audiência que eles desejam.” Jeffrey
K. Tullis, em
The Rhetorical Presidency
(
A Presidência retórica
), chega a dizer
que a retórica presidencial não é apenas uma forma de comunicação, mas
um poder propriamente dito, exercido pelos presidentes.
As palavras têm peso.
Aqui no Brasil o postulado tem igual validade, embora, como afirmei,
não haja uma tradição de estudar a questão como nos Estados Unidos.
Existem estudos, obviamente, mas, em número, eles ainda estão aquém
do desejável. Este livro pretende se somar aos esforços existentes. Seu ob-
jetivo, contudo, é ainda modesto, embora o trabalho seja um passo neces-
sário: nesse primeiro momento, há duas metas que se complementam. A
primeira é sistematizar, num dicionário, os conceitos que Lula vem emi-
1,2,3,4,5,6,7,8 10,11
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