Para comemorar os 34 anos do
"Jornal Nacional", a TV Globo pôs
no ar uma série de chamadas comemorativas muito simples: flashes
dos principais momentos da Histó-
ria do Brasil e do mundo que o telejornal líder de audiência nas últimas três décadas exibiu. Foi uma pequena mostra dos serviços que o
"JN" presta ao Brasil, o único órgão
de imprensa presente, graças às afiliadas, em 115 municípios, nos 26 estados do país e no Distrito Federal,
com equipes completas de jornalismo. Tudo feito por brasileiros, para
brasileiros, em defesa do Brasil.
Mas não escrevo para elogiar o
"JN". Escrevo porque, em uma daquelas chamadas, uma pequena
imagem do repórter Ernesto Paglia
pode ter contribuído para rechaçar
de vez uma das mais graves acusa-
ções que o "JN" já sofreu: a de que
não cobriu o comício das diretas, na Praça da
Sé, em São Paulo. Uma acusa-
ção que está, inclusive, em muitos livros. Leiam
a seguir uma pequena mostra:
Primeiro, Eugênio Bucci, em
seu livro "Ética e
imprensa", editado pela Companhia das Letras em
2000, na página 29:
"No dia 25 de janeiro de 1984, o
'Jornal Nacional' tapeou o telespectador. Mostrou cenas de uma manifestação pública na Praça da Sé, em
São Paulo, e disse que aquilo acontecia em virtude da comemoração
do aniversário da cidade. A manifestação era real: lá estavam dezenas
de milhares de cidadãos em frente a
um palanque onde lideranças políticas discursavam. Mas o motivo que
o 'Jornal Nacional' atribuiu a ela não
passa de invenção. Aquele comício
nada tinha a ver com fundação de
cidade alguma. A multidão estava lá
para exigir eleições diretas para
Presidência da República. O Jornal
Nacional enganou o cidadão naquela noite — e prosseguiu enganando
durante semanas a fio, ao omitir as
informações sobre a campanha por
eleições diretas. Para quem só se inteirasse dos acontecimentos pelos
noticiários da Globo, a campanha
das diretas não existia."
Mario Serio Conti, em seu livro "Notícias do Planalto", também editado
pela Companhia das Letras, em 1999,
nas páginas 37 e 38, foi mais longe:
"Em 25 de janeiro de 1984, o patrão (Roberto Marinho) estava irredutível. Para aquele dia, aniversário
de fundação da cidade de São Paulo,
fora marcado um ato público na Pra-
ça da Sé. Centenas de milhares de
pessoas compareceram. No palanque se encontravam desde o presidente do PT, o Partido dos Trabalhadores, Luís Inácio Lula da Silva,
até Tancredo Neves, do Partido do
Movimento Democrático Brasileiro,
o PMDB, passando por cantoras,
compositores, atores e atrizes de
novelas da Globo. O próprio apresentador da manifestação, o locutor
de futebol Osmar Santos, era um astro da Rádio Globo. Com a Bandeirantes e a Manchete dando flashes
ao vivo e dedicando a maior
parte de seus noticiários à manifestação na Sé,
Boni imaginou
uma maneira de
mencioná-la, ao
mesmo tempo
que cumpria a
ordem de não
noticiá-la. Numa
reunião na sala
de Armando Nogueira, determinou que uma repórter falasse da Praça da Sé, em menos
de vinte segundos, que ali estava
sendo comemorado com um show o
aniversário de São Paulo. Não deu
certo: além de omitir, a Globo foi
acusada de distorcer a verdade."
Até mesmo no prestigiado "Dicionário Histórico Biográfico", da Fundação Getúlio Vargas, na página
4.921, está dito:
"Em 1984, o país viveu o ápice da
campanha das diretas para a Presidência da República, desencadeada
no final do ano anterior. Ignorando-a
inicialmente, a Globo dava pouco espaço, nos noticiários, aos grandes
comícios e passeatas que impulsionaram a campanha. O comício da
Praça da Sé de São Paulo, em janeiro,
recebeu uma cobertura de poucos
flashes que apenas mostrava artistas, caracterizando o evento como
uma comemoração do aniversário
da cidade e desprezando a presença
de dez governadores de estado."
Luiz Felipe Miguel, em seu artigo
"Mídia e manipulação política no
Brasil", publicado em "Comunica-
ção e política", volume VI, página
124, segue a mesma linha:
"Outro episódio significativo se
refere à grande mobilização popular
exigindo o retorno das eleições diretas para a Presidência da República,
em 1984 — e que a Globo procurou
ignorar. No dia 25 de janeiro, um comício em São Paulo reuniu cerca de
300 mil pessoas em defesa das diretas, dando início a uma série de
grandes manifestações populares.
No 'Jornal Nacional', porém, o comí-
cio foi despido de seu caráter polí-
tico e noticiado como se fosse um
espetáculo comemorativo do aniversário da cidade de São Paulo."
Deve haver muitos outros livros,
a produção acadêmica no Brasil
nessa área aumentou muito nos últimos anos. O que diminuiu foi a ênfase no método, na pesquisa. Bastava uma visita ao Centro de Documentação da TV Globo, onde todas
as reportagens estão arquivadas,
para que acusações tão graves simplesmente não existissem. A reportagem de Ernesto Paglia foi ao ar na
noite do comício, realizado no dia
25 de janeiro, entre outros motivos,
justamente por ser o aniversário de
430 anos da cidade, um feriado. O
aniversário é o mote do locutor, e o
repórter, de fato, inicia a reportagem por ele, mas, em seguida, fala
do comício, diz que ele pede as diretas para presidente, descreve o
que aconteceu e termina com o discurso do então governador de São
Paulo, Franco Montoro. Leiam a
transcrição:
"Repórter: 'São Paulo, 430 anos,
nove milhões de brasileiros vindos
de todo o país. A cidade de trabalho. São Paulo fez feriado hoje para
comemorar o aniversário. Foi também o aniversário do seu templo
mais importante, a Catedral da Sé.
De manhã, na missa, o cardeal arcebispo dom Paulo Evaristo Arns lembrou o importante papel da Catedral da Sé nesses 30 anos em que
ela vive no coração da cidade'.
Dom Paulo: 'Nessa igreja se promoveu praticamente a libertação
de um povo que quer manifestar-se
como povo. Eu acho que isso é fundamental para uma igreja mãe que é
tratada com tanto carinho'.
Repórter: 'E junto com a cidade
aniversariou também hoje a Universidade de São Paulo. A USP completou 50 anos de existência. A ministra
da Educação, Ester Figueiredo Ferraz, foi à USP hoje. Ela falou da importância da Universidade com suas
33 faculdades e 45 mil alunos e assistiu a uma inesperada manifestação
de estudantes e funcionários. Eles tomaram o anfiteatro com faixas e cartazes e pediram verbas para a educação, eleições diretas para reitor e
para presidente da República.
Mas à tarde, milhares de pessoas
vieram ao Centro de São Paulo para,
na Praça da Sé, se reunir num comício
em que pediam eleições diretas para
presidente. Não foi apenas uma manifestação política. Na abertura, música, um frevo do cantor Moraes Moreira. A Praça da Sé e todas as ruas vizinhas estão lotadas (panorâmica da
multidão e das ruas ao lado, tomadas).
No palanque mais de 400 pessoas, deputados, prefeitos (imagens do palanque) e muitos artistas, Christiane
Torloni, Regina
Duarte, Irene Ravache, Chico
Buarque, Milton
Gonçalves, Ester
Góes, Bruna
Lombardi, Alceu
Valença, Fernanda Montenegro,
Gilberto Gil. A
chuva não afasta
o povo. Os oradores se sucedem no palanque e ninguém arreda pé. O radialista Osmar
Santos apresenta os oradores. O governador de S. Paulo, Franco Montoro, fez o discurso de encerramento
(imagens e som de Montoro, ao lado
de Ulysses Guimarães, Orestes Quércia, Brizola e Lula)'.
Franco Montoro: 'Um dos passos
na luta da democracia. Houve a
anistia, houve a censura, o fim da
tortura; mas é preciso conquistar o
fundo do poder que é a Presidência
da República'".
A fita está à disposição. Não houve omissão. Está tudo na reportagem de Paglia. Já na USP, a menção,
com imagens, do protesto dos estudantes pedindo diretas para presidente. E as imagens da praça lotada, o motivo do comício dito com
todas as letras, a ênfase na disposição cívica do povo "que não arreda pé nem com a chuva", os políticos mostrados no palanque e o discurso final, na voz de Montoro, forte, incisivo, em tom de convocação.
Sim, na noite de 25 de janeiro de
1984, os brasileiros se informaram
na Globo de que um comício pelas
diretas se realizara em São Paulo.
Como sempre, estavam bem informados. Desde o momento em
que Dante de Oliveira protocolou
sua emenda na Câmara dos Deputados, em março de 1983, a Globo cobriu todos os passos da luta pelas
diretas. Já em março daquele ano, o
então repórter Antônio Britto, numa
reportagem para o 'Jornal Nacional', entrevistando o então líder do
PMDB Freitas Nobre, contou aos brasileiros qual seria a estratégia da oposição para aprovar a emenda. E nos
meses seguintes, foram inúmeras as
reportagens a respeito, não somente
sobre a tramitação da emenda, como
também sobre as manifestações populares (a Globo cobriu os comícios,
desde a caminhada pelas diretas no
dia 13 de janeiro
de 1984).
A minha tese é
que não há má-fé
por parte de
quem difunde a
acusação de que
a Globo não cobriu o comício
de São Paulo. Eu
sou fortemente
inclinado a supor que a Globo
é tão querida, e
tão reconhecidamente competente,
que muitos não a perdoaram por
não ter feito uma campanha pelas
diretas, no estilo das que faz em
época de Copa do Mundo. Esquecem-se de que a ditadura ainda estava forte, tão forte que as diretas
foram votadas sob a vigência das
medidas de emergência, um dispositivo constitucional, decretado nas
vésperas da votação, que proibiu
manifestações populares em Brasí-
lia (lembram-se do general Newton
Cardoso, em seu cavalo, dando chicotadas em carros presos num engarrafamento?) e proibiu a transmissão por emissoras de rádio e televisão da sessão do Congresso Nacional que acabaria rejeitando as diretas-j á .
Não, a Globo não fez uma campanha, mas não deixou de fazer bom
jornalismo .