O
que define um democrata?
É a crença de que o povo
tem o direito de escolher
os seus governantes, segundo as suas crenças, os seus valores e o que acha melhor para si e para
a coletividade. Pode escolher quem
quiser, menos aqueles que não acreditam na democracia e querem destruí-la ou restringi-la. Isso não implica
de forma alguma dizer que a crença
dos democratas é que o povo escolhe
sempre bem. Inúmeras experiências
mostram que há escolhas infelizes,
mas é sempre melhor o povo escolher mal do que não escolher. Digo isso diante de análises que leio aqui e
ali, segundo as quais o povo no Brasil, descrente, estaria votando desesperançado e sem vontade. Depois de
tantos escândalos, o povo estaria
dando um voto resignado.
Não é verdade.
Admito que é ainda prematuro falar
em resultados de uma eleição que
mal começou, mas, diante dos números das pesquisas, há um sinal claro
de que pode haver tudo menos resignação. Não compartilho a tese de que
o povo esqueceu os escândalos que
cercaram o PT. Num país com imprensa livre, com bons noticiários na TV e
no rádio, tudo foi informado extensiva e intensivamente. Não houve episódio que não tenha sido destrinchado, contado, recontado, explicado,
avaliado. Mais de um ano depois da
eclosão das primeiras denúncias, o
povo sabe o que aconteceu. E, no entanto, tem demonstrado, até aqui,
não hesitação ou dúvida, mas apoio
enorme ao candidato do partido que
foi o pivô de todos os escândalos.
A persistir esse quadro, não haverá muitas hipóteses. A primeira é que o
povo, sabedor do que aconteceu,
acredita na inocência do presidente.
A segunda é que o povo acredita no
envolvimento do presidente, mas decidiu perdoá-lo. A terceira é que o povo acredita no envolvimento do presidente, mas não acha isso relevante.
Dependendo de qual das três hipóteses esteja mais próxima da verdade,
as implicações para um julgamento
mais isento sobre o caráter nacional
são também três, mas eu não acho necessário discorrer sobre elas.
Da mesma forma, acredito firmemente que o Congresso que aí está e o
que está por vir é a nossa cara, a cara do país.
Culpar o sistema político pelas escolhas que
fazemos é o mesmo que
nos considerar inaptos
para o voto. É extremamente constrangedor
ouvir os políticos propondo reformas políticas cujo objetivo, em
última instância, é "corrigir" o voto do eleitor,
de certa forma querendo guiá-lo para que faça
boas escolhas. Não pode haver pensamento mais antidemocrático. Boas
escolhas para quem? Para o eleitor ou
para o eleito?
Não existe sistema eleitoral perfeito, e uma rápida pesquisa nos mostra
que em todos os países há movimentos que tentam reformar os seus sistemas. Quem tem o voto distrital quer
mudar para o voto proporcional.
Quem tem o voto proporcional quer
mudá-lo para o voto distrital. Quem
tem proporcional com lista fechada
quer mudar para lista aberta e viceversa. O voto distrital é acusado de garantir maiorias parlamentares sólidas, mas divorciadas do real desejo
do povo. O partido de Tony Blair conquistou 55% das cadeiras do parlamento, mas obteve apenas 37% dos
votos. Sistemas proporcionais são
acusados do defeito oposto: representam tão bem a vontade popular
que fragmentam o voto, tornando difícil a formação de maiorias parlamentares. Até mesmo o voto distritalmisto, que mistura os dois sistemas,
provoca situações bizarras, como a
vivida pelos alemães: três meses depois das últimas eleições, ainda não
se sabia quem tinha sido o vencedor
(no final, prevaleceu
um governo em que o
perdedor também governa).
Acusam o nosso sistema de ser quase único no mundo, com similar apenas na Finlândia,
mas isso não é verdade:
há sistemas eleitorais
com lista aberta em
muitos outros países. O
que caracteriza o nosso
sistema é que ele respeita a proporcionalidade de determinada corrente de opinião, mas dá ao eleitor o direito de votar na pessoa daquele partido em
quem mais confia. No sistema de lista
fechada, é a cúpula partidária quem
escolhe os candidatos a serem eleitos: se o partido conquistar nas urnas
o direito de eleger "N" candidatos, de
antemão já se sabe quem são, pois foi
a cúpula que os ordenou numa ordem
de prioridade. Nas listas abertas, o
partido conquista o direito de eleger
"X" candidatos, mas estes serão os
mais votados pelo povo, um sistema
absolutamente democrático.
Hoje, ouve-se que esse sistema dá
origem ao Congresso tal como o conhecemos, mas isso não é culpa do
sistema, mas do povo, simples assim.
Querer corrigir a vontade do povo é
tirar dele o direito de escolha e delegá-lo a cúpulas partidárias. Em tese,
tal sistema daria chances de o vencedor na corrida presidencial fazer também a maioria no parlamento, mas de
uma maneira artificial. Pensando em
eleições passadas, podemos imaginar
o desastre que isso seria. É só imaginar em 2002 o PT elegendo 300 deputados, em vez dos 90 que conseguiu
eleger. Todos os acertos do governo
Lula teriam passado, mas também todos os erros e os desvios autoritários,
não dele, mas do seu partido: Conselho Federal de Jornalismo e Ancinav,
dois projetos que são contra nossa índole democrática, teriam sido aprovados com folga. A beleza do nosso
sistema é que o Congresso representa
mais de perto o nosso povo, mesmo
que, diante do espelho, não gostemos
do que vemos. Um mérito esse sistema tem: serve de contraponto ao voto emocional que, muitas vezes, pode
decidir a eleição presidencial.
É preciso manter a cláusula de barreira, para que apenas partidos nacionais tenham vida. E é preciso encontrar uma fórmula que aumente a fidelidade partidária, para que maiorias
se formem mais facilmente.
De resto, para melhorar o Congresso, a reforma necessária é a da educação. Como em tudo o mais, somente com um povo educado teremos
mais chances de encontrar a felicidade. Ou ao menos de tentar buscá-la de
modo mais efetivo.