A saúde brasileira à luz das invasões bárbaras, O Globo, 12/02/2003 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"A saúde brasileira à luz das invasões bárbaras", O Globo, 12/02/2003

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"A saúde brasileira à luz das invasões bárbaras", O Globo, 12/02/2003

Para nós, brasileiros, um aspecto do excelente filme "As invasões bárbaras", embora de fundamental importância, tem sido deixado de lado nas discussões que o filme suscita. Refiro-me ao sistema público de saúde canadense. Muitos já escreveram sobre o alcance mais filosófico do filme: o fim das utopias, o direito a uma morte digna, a crise do pensamento socialista, o choque de valores entre o "consumir" e o "conhecer" e a demonstração de que a tese de Fukuyama sobre o fim da História está certa, apesar de o nome do filme sugerir uma inclinação à tese de Huntington sobre o choque de civilizações. Mas entender o sistema de saúde canadense é fundamental para chegar ao cerne do que pensa o cineasta.

No filme, o hospital público é uma pocilga: pacientes se dividem entre aqueles com direito a uma enfermaria lotada ou aqueles que devem permanecer em macas nos corredores (tal como em nossos hospitais mais procurados). Exames médicos hoje simples, como ressonância magnética, não estão disponíveis e os médicos dedicam pouca atenção aos pacientes: trocam os seus nomes e desconhecem até mesmo as doenças de que sofrem (e falam com eles enquanto comem maçãs). O personagem principal, paciente terminal de um câncer, diz, com altivez: "Eu defendi a nacionaliza- ção do sistema de saúde. Agora, não posso reclamar." Tudo é tão chocante que os poucos jornalistas que trataram do assunto, aqui no Brasil, atribuíram esse retrato cru às opções ideológicas de Denys Arcand, o cineasta, ou se recusaram a admitir que a coisa era real, classificando-a como caricatura.

Mandei e-mails a jornalistas canadenses de vários jornais, perguntando se Arcand tinha se excedido ou se a situa- ção era ao menos próxima da que mostra o filme. Os que me responderam disseram que a vida real está muito bem retratada, a coisa é assim mesmo. Mais reveladora é uma entrevista do próprio Arcand ao site quebec.com. Nela, o cineasta diz que se baseou em suas experiências pessoais para retratar com fidelidade a situação dos hospitais. Ele contou que seu avô, sua mãe e seu pai morreram de câncer. "Não foi isto que motivou o filme, mas foi o que deu o tom", disse ele. Para Arcand, o que aconteceu a seus parentes é a regra geral. "Não acho que a minha experiência com o sistema de saúde de Québec seja diferente da experiência de ninguém", explicou. Nem mesmo a questão dos sindicatos é uma caricatura. Ao site, ele disse que o roubo de objetos dos pacientes é comum e de difícil apuração, porque os sindicatos protegem os funcionários.

Que sistema de saúde é este? No Canadá, as consultas médicas são gratuitas, assim como as internações, as cirurgias, os exames, os remédios durante as internações e os remédios de uso contínuo para idosos de 65 anos ou mais. O modelo começou a ser construído em 1950 e foi aperfeiçoado nos anos 60 e 70 até chegar a ser como é hoje. O governo central é responsável por 40% das verbas e o restante é financiado pelas províncias através de um imposto sobre salários (pagos pelo empregador) e dos impostos gerais pagos pelos cidadãos. Para que não houvesse um sistema público aviltado por um sistema privado paralelo, estabeleceuse um monopólio estatal: nenhuma seguradora pode oferecer planos de cobertura de serviços básicos de saúde. O sistema é universal e compulsório.

Um dos estudos que pesquisei, diz singelamente: "Princípios rudimentares de economia estabelecem que se uma commodity é oferecida a preço zero, a demanda aumenta exponencialmente, a oferta entra em colapso e o que se vê é desabastecimento." É exatamente o que se tem no Canadá. Sem a oferta de seguros privados, uma rede hospitalar privada não pode prosperar para compensar a deficiência estatal: os serviços de um hospital são demasiadamente caros e poucos podem pagar. A conseqüência é que os gastos do governo aumentam ano a ano até o limite do insuportável, o que leva a uma tentativa contínua de reduzir custos. Como pessoal é a principal despesa num sistema de saúde, os salários são comprimidos e a insatisfação aumenta assim como a ineficiência. Faltam médicos em regiões distantes e leitos em zonas urbanas.

Os exemplos são muitos, mas fiquemos com estes: o país está entre os dez piores numa lista de 30 países membros da Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento no que diz respeito à disponibilidade de equipamentos de alta tecnologia, como ressonância magnética e tomografia computadorizada (embora seja o quinto país em gastos com saúde); em Ontá- rio, em 1999 e 2000, a demanda por tratamento especializado ultrapassou a oferta para 1.200 pacientes de câncer, que tiveram de viajar para os EUA; há uma falta crônica de médicos, que preferem emigrar para os EUA, onde os salários são melhores; em 1997, pacientes com câncer no seio tiveram de esperar uma média de 67 dias depois da operação para o início da necessária quimioterapia (81% esperaram mais do que o recomendado).

No filme, portanto, o hospital é um personagem tão eloqüente quanto o protagonista Rémy. E, como ele, vítima de uma doença fatal. A socialização dos serviços básicos — apesar de uma idéia generosa — leva sempre à ineficiência, à estagnação e impede o desenvolvimento da técnica. É Fukuyama puro.

Tudo isso me fez pensar sobre a nossa situação aqui. Se o Canadá, com um PIB 63% maior do que o nosso, uma população seis vezes menor, e, portanto, uma renda per capita dez vezes maior, vive uma situação dessas, talvez o nosso sistema de saúde não seja tão bárbaro como nós imaginamos: pelo que se vê no filme, o Canadá tem hospitais com serviços parecidos com os oferecidos pelos nossos. No papel, é um país perfeito. Na vida real, talvez seja como um Brasil, com uma Constituição Cidadã e um Serviço Único de Saúde que, ao menos no papel, não deixa nada a dever a canadenses. Mas não é essa a li- ção que tirei: é preciso evitar tentações socializantes. Boas intenções, mesmo aquelas registradas em diplomas legais, não bastam; é preciso buscar um modelo cujo norte seja a eficiência econô- mica capaz de dotar os cidadãos dos meios necessários para que possam pagar pela qualidade de serviços com que sonham. A alternativa é olhar um hospital com corredores lotados de pacientes em tratamento e apenas resignar-se: neste caso, talvez, tratamento médico de excelência, gratuito, para milhões, seja apenas uma quimera.