Cavalcante
Para nós, brasileiros, um aspecto do excelente filme "As invasões bárbaras", embora de
fundamental importância, tem
sido deixado de lado nas discussões
que o filme suscita. Refiro-me ao sistema público de saúde canadense. Muitos já escreveram sobre o alcance mais
filosófico do filme: o fim das utopias, o
direito a uma morte digna, a crise do
pensamento socialista, o choque de valores entre o "consumir" e o "conhecer"
e a demonstração de que a tese de Fukuyama sobre o fim da História está
certa, apesar de o nome do filme sugerir uma inclinação à tese de Huntington
sobre o choque de civilizações. Mas entender o sistema de saúde canadense é
fundamental para chegar ao cerne do
que pensa o cineasta.
No filme, o hospital público é uma pocilga: pacientes se dividem entre aqueles com direito a uma enfermaria lotada
ou aqueles que devem permanecer em
macas nos corredores (tal como em
nossos hospitais mais procurados). Exames médicos hoje simples, como ressonância magnética, não estão disponíveis
e os médicos dedicam pouca atenção
aos pacientes: trocam os seus nomes e
desconhecem até mesmo as doenças de
que sofrem (e falam com eles enquanto
comem maçãs). O personagem principal, paciente terminal de um câncer, diz,
com altivez: "Eu defendi a nacionaliza-
ção do sistema de saúde. Agora, não
posso reclamar." Tudo é tão chocante
que os poucos jornalistas que trataram
do assunto, aqui no Brasil, atribuíram
esse retrato cru às opções ideológicas
de Denys Arcand, o cineasta, ou se recusaram a admitir que a coisa era real,
classificando-a como caricatura.
Mandei e-mails a jornalistas canadenses de vários jornais, perguntando se
Arcand tinha se excedido ou se a situa-
ção era ao menos próxima da que mostra o filme. Os que me responderam disseram que a vida real está muito bem
retratada, a coisa é assim mesmo. Mais
reveladora é uma entrevista do próprio
Arcand ao site quebec.com. Nela, o cineasta diz que se baseou em suas experiências pessoais para retratar com fidelidade a situação dos hospitais. Ele contou que seu avô, sua mãe e seu pai morreram de câncer. "Não foi isto que motivou o filme, mas foi o que deu o tom",
disse ele. Para Arcand, o que aconteceu
a seus parentes é a regra geral. "Não
acho que a minha experiência com o sistema de saúde de Québec seja diferente
da experiência de ninguém", explicou.
Nem mesmo a questão dos sindicatos é
uma caricatura. Ao site, ele disse que o
roubo de objetos dos pacientes é comum e de difícil apuração, porque os
sindicatos protegem os funcionários.
Que sistema de saúde é este? No Canadá, as consultas médicas são gratuitas, assim como as internações, as cirurgias, os exames, os remédios durante as internações e os remédios de uso
contínuo para idosos de 65 anos ou
mais. O modelo começou a ser construído em 1950 e foi aperfeiçoado nos
anos 60 e 70 até chegar a ser como é
hoje. O governo central é responsável
por 40% das verbas e o restante é financiado pelas províncias através de um
imposto sobre salários (pagos pelo empregador) e dos impostos gerais pagos
pelos cidadãos. Para que não houvesse
um sistema público aviltado por um
sistema privado paralelo, estabeleceuse um monopólio estatal: nenhuma seguradora pode oferecer planos de cobertura de serviços básicos de saúde.
O sistema é universal e compulsório.
Um dos estudos que pesquisei, diz
singelamente: "Princípios rudimentares
de economia estabelecem que se uma
commodity é oferecida a preço zero, a
demanda aumenta exponencialmente,
a oferta entra em colapso e o que se vê
é desabastecimento." É exatamente o
que se tem no Canadá. Sem a oferta de
seguros privados, uma rede hospitalar
privada não pode prosperar para compensar a deficiência estatal: os serviços
de um hospital são demasiadamente
caros e poucos podem pagar. A conseqüência é que os gastos do governo aumentam ano a ano até o limite do insuportável, o que leva a uma tentativa
contínua de reduzir custos. Como pessoal é a principal despesa num sistema
de saúde, os salários são comprimidos
e a insatisfação aumenta assim como a
ineficiência. Faltam médicos em regiões
distantes e leitos em zonas urbanas.
Os exemplos são muitos, mas fiquemos com estes: o país está entre os dez
piores numa lista de 30 países membros da Organização para Cooperação
Econômica e Desenvolvimento no que
diz respeito à disponibilidade de equipamentos de alta tecnologia, como ressonância magnética e tomografia computadorizada (embora seja o quinto
país em gastos com saúde); em Ontá-
rio, em 1999 e 2000, a demanda por tratamento especializado ultrapassou a
oferta para 1.200 pacientes de câncer,
que tiveram de viajar para os EUA; há
uma falta crônica de médicos, que preferem emigrar para os EUA, onde os salários são melhores; em 1997, pacientes
com câncer no seio tiveram de esperar
uma média de 67 dias depois da operação para o início da necessária quimioterapia (81% esperaram mais do
que o recomendado).
No filme, portanto, o hospital é um
personagem tão eloqüente quanto o
protagonista Rémy. E, como ele, vítima
de uma doença fatal. A socialização dos
serviços básicos — apesar de uma idéia
generosa — leva sempre à ineficiência,
à estagnação e impede o desenvolvimento da técnica. É Fukuyama puro.
Tudo isso me fez pensar sobre a nossa situação aqui. Se o Canadá, com um
PIB 63% maior do que o nosso, uma população seis vezes menor, e, portanto,
uma renda per capita dez vezes maior,
vive uma situação dessas, talvez o nosso sistema de saúde não seja tão bárbaro como nós imaginamos: pelo que
se vê no filme, o Canadá tem hospitais
com serviços parecidos com os oferecidos pelos nossos. No papel, é um país
perfeito. Na vida real, talvez seja como
um Brasil, com uma Constituição Cidadã e um Serviço Único de Saúde que, ao
menos no papel, não deixa nada a dever a canadenses. Mas não é essa a li-
ção que tirei: é preciso evitar tentações
socializantes. Boas intenções, mesmo
aquelas registradas em diplomas legais,
não bastam; é preciso buscar um modelo cujo norte seja a eficiência econô-
mica capaz de dotar os cidadãos dos
meios necessários para que possam
pagar pela qualidade de serviços com
que sonham. A alternativa é olhar um
hospital com corredores lotados de pacientes em tratamento e apenas resignar-se: neste caso, talvez, tratamento
médico de excelência, gratuito, para
milhões, seja apenas uma quimera.