Nem bem tinha publicado o
meu artigo sobre prioridades, e saiu a notícia sobre a
reformulação da orla de
Ipanema, com a construção de uma
garagem subterrânea na Avenida
Vieira Souto e a modificação do canteiro central. Sei que a ideia é fazer a
coisa sem custo para a prefeitura: em
troca de uma concessão de 25 anos
ou mais, o interessado arcaria com
todas as despesas. Mesmo assim, a
iniciativa revela o mesmo viés de
sempre: superinvestir em áreas onde
não há necessidade de investimento.
De qualquer ângulo que se examine a
questão, a Zona Sul é uma região com
nível de serviço internacional, já tem
o suficiente. Precisa apenas de manutenção, coisa que é falha em todo o
município.
Um passeio pela Ataulfo de Paiva,
Visconde de Pirajá, Nossa Senhora
de Copacabana e Voluntários da Pátria mostra que os altos investimentos do excelente Rio Cidade de Luiz
Paulo Conde, feitos há mais de dez
anos, estão se perdendo por falta de
manutenção, que nem de longe é cara: jardins malcuidados e bancos
quebrados no Leblon, faixas coloridas totalmente falhadas e postes bêbados sem luz em Ipanema, pontos
de ônibus quebrados em Copacabana e calçadas já desfeitas e esburacadas em Botafogo. Em vez de manter o
que já está feito, pensa-se logo em fazer coisas novas. Um quadro que diz
muito de nós: conservar não é visto
como sinal de progresso. Ou melhor:
só quando o assunto é favela.
A salutar retomada da discussão
sobre remoção, por exemplo, acaba
sempre vista por alguns como uma
espécie de perversidade social,
quando, na verdade, perversidade é
achar que é um direito do cidadão
continuar a morar em situação desumana. Não se trata de direito, é falta
de opção. O direito a ser assegurado
é o de morar com segurança e dignidade, coisa que as favelas não podem
garantir. O pior, no entanto, é a confusão que sempre se estabelece
quando o debate está ressurgindo.
Voltam a lembrar Cidade de Deus, e a
dizer que não se pode levar os favelados para longe dos centros urbanos, sem transporte. Mas alguém
propôs isso?
Não vi ninguém defendendo remoção pura e simplesmente. Eu, por
exemplo, escrevi em meu último artigo que a prioridade dessa cidade é
investir em transporte de massa e,
dentro dessa prioridade, o transporte de trens deve concentrar todas as
atenções. Se as cinco linhas de trens
suburbanos, com 210 quilômetros de
extensão, forem transformadas em
metrô de superfície, com as estações
remodeladas, com o sistema se entrelaçando com as linhas existentes
do metrô, os subúrbios seriam excelentes polos habitacionais: reteriam
seus moradores atuais e atrairiam
novos, numa típica solução de mercado. Eu tenho certeza de que, garantido o acesso ao Centro em poucos
minutos, e com um sistema inteligente de crédito habitacional, muito
poucos preferirão morar em morros
inabitáveis. A remoção ficaria restrita àqueles que teimassem em se arriscar vivendo em situações degradadas e degradantes.
Essa questão precisa ser enfrentada. A postura de olhar para as favelas
e achar que, com pequenos remendos, tudo ficará bem só leva ao imobilismo. Sempre me espantou o fato
de que o chamado "asfalto" conviva
com a existência do chamado "morro" com tanta naturalidade. Repito,
não vejo nisso sinal de tolerância,
mas de extremo egoísmo. Uma nação
que tenha chegado aonde chegamos,
do ponto de vista econômico e social
tem de ter uma desfuncionalidade de
caráter muito grande para seguir
achando que esse tipo de moradia é
aceitável. Não é. Muitos brasileiros
gostam de ver o Brasil como um país
solidário, mas eu creio que a existência de favelas aponta para outra direção: somos extremamente individualistas. Se alguém for parado na
rua e questionado sobre se acha natural que os pobres, sem dinheiro,
morem em favelas, a resposta quase
sempre será: "Que jeito?" Isso é traço
de uma sociedade bárbara.
Sou adepto de uma sociedade livre, de mercado, em que o mérito seja a medida do sucesso: quanto menos regulamentos, mais a sociedade
terá condições de achar a solução
para os seus problemas. Mas isso
nem de longe significa a defesa da
anomia ou a lei da selva. Uma sociedade de mercado só funciona onde
todos tenham acesso a ele, e, para isso, é preciso que o Estado garanta
igualdade de oportunidades. Transporte bom e barato é um requisito
básico: se ele existir, cada um poderá
morar segundo as suas possibilidades, mas todos dentro de condições
mínimas.
Isso requer fazer escolhas, gastar
bem o dinheiro público. Temos de
parar de gastar onde não é preciso,
esquecer Engenhões, Cidades da Música, Zona Sul, e nos concentrarmos
no que muda uma cidade.
PS: Em meu artigo anterior, disse
que Darcy Ribeiro era o autor da
frase "favela não é problema, mas
solução". Darcy, porém, apenas repetia John Turner, arquiteto britâ-
nico que, em visita ao Rio em 1968,
disse: "A favela me foi mostrada como um problema, e, no entanto, me
parece parte da solução; os conjuntos habitacionais me foram mostrados como solução, e me parecem
problema."