Uma das promessas do prefeito Eduardo Paes é acabar com a "aprovação automática", o nome propositadamente errado para "progressão continuada". "Queremos ter
certeza de que nossas crianças vão
sair da escola aprendendo a ler, escrever e somar", ele repete à exaustão. A princípio, parece uma medida justa, mas basta um minuto de
reflexão para se perceber o equívoco: o que garante que, obrigando as
crianças a repetir de ano, elas sairão da escola lendo, escrevendo e
somando? Nada.
As crianças não deixam de aprender porque são malandras ou pouco
inteligentes: não aprendem porque
os professores não ensinam direito.
Em vez de acabar com a "aprovação
automática", o prefeito deveria garantir que escolas e professores tivessem um salto de qualidade. Porque o fim da "aprovação automática"
só terá dois efeitos, ambos maléficos:
sobrecarregará com repetentes as
primeiras séries, o que prejudicará
os alunos que acabam de chegar à escola; e humilhará os repetentes que,
depois de alguma tentativa, deixarão
a escola, indo para as ruas e ficando
à mercê de todo tipo de desvio.
Isso está devidamente comprovado por uma enorme produção acadê-
mica, iniciada nos anos 80 por Sérgio
Costa Ribeiro, precocemente falecido, mas o espaço é curto para descrevê-la. Acho mais útil mostrar o
exemplo do Reino Unido.
Lá, também o sistema é o de progressão continuada. Ninguém fala demagogicamente em "aprovação automática", porque não se trata disso: o
conceito é fazer o aluno, avaliado de
múltiplas maneiras, seguir os seus
colegas no curso natural das séries.
Como se dá o processo? A maior
preocupação é manter o aluno na escola. Por esta razão, uma lei determina que todas as crianças dos cinco
aos 16 anos devem, obrigatoriamente, freqüentar as aulas. Não importa
que as escolas sejam particulares ou
públicas, nenhuma delas, ao final do
curso, emite um certificado, um diploma, dando conta de que o aluno
aprendeu o que lhe foi ensinado. Se
um aluno requisitar, o que é raro, talvez a escola forneça um atestado dizendo que ele freqüentou o estabelecimento, mas o papel não servirá como prova de aprendizado ou porta
para o mercado de trabalho. O que
dirá se um aluno aprendeu ou não
são os General Certificates of Secondary Education — GCSEs. Trata-se de
certificados obtidos depois que os
alunos, no último ano do ciclo, prestam exames nacionais em várias disciplinas: todos os estudantes do país
fazem o mesmo teste e, se obtiverem
a nota mínima, ganham o certificado
que, ele sim, será a prova de que
aprendeu esta ou aquela matéria.
Não há a obrigatoriedade de se prestar tal exame, mas é extremamente
raro o caso do aluno que não faz exame algum. Note que "secundary education" é o equivalente ao nosso antigo Primeiro Grau (lá, esse ciclo tem
11 anos).
O nosso ensino médio (antigo Segundo Grau) é opcional no Reino Unido, e os alunos cursam apenas as cadeiras que interessem a eles: o curso funciona quase como uma "primeira
parte" da universidade. Ao fim desse
segundo ciclo, os estudantes prestam novos exames nacionais, nas disciplinas escolhidas, e, se atingirem a
nota mínima, obtêm os Advanced
Certificates of Education (os chamados A levels). A entrada na universidade depende da nota que o aluno
obteve nos exames e das disciplinas
que cursou (quem quer fazer Medicina tem de prestar exames em Ciências, Biologia etc., disciplinas desnecessárias para quem quer cursar Literatura, por exemplo).
Parece um sistema exageradamente displicente? Somente para nós,
acostumados a ver o Estado como
uma babá, que nos tutela nos mínimos detalhes. O que a lei determina é
que as escolas "ensinem". A função
de "aprender" cabe aos alunos, que
devem ser monitorados por suas famílias (e não pelo Estado). Para isso,
os pais recebem rotineiramente relatórios sobre o desempenho dos alunos em todas as disciplinas. Não é
que os alunos não façam provas; eles
fazem, são avaliados, e essa avaliação é posta à disposição da família.
Se um aluno vai mal, a família é chamada para que se discutam formas
de melhorar o desempenho: aulas de
reforço, cuidados especiais em sala
de aula, programas para que as crianças estudem em casa. Em casos extremos, a escola pode propor que o
aluno repita de ano, mas isso é extremamente raro e depende da concordância dos pais.
Não se trata de leniência, mas de
uma visão completamente distinta
da nossa. Aqui a utopia é ensinar as
mesmas matérias a todos os alunos e desejar que todos as apreendam de
forma igual. Era assim na Inglaterra
Vitoriana, e não funcionava, como
não funciona hoje no Brasil. Lá, eles
mudaram para a "progressão continuada", mas não consideram que os
alunos "passam de ano automaticamente". Porque a filosofia é que mesmo aqueles com graves deficiências
em matemática e ciências podem ter
um desempenho muito bom em música ou português e, por isso, merecem passar. Cada criança tem o seu
talento.
Aqui, pelo menos no Rio, já temos
a progressão continuada. O que falta
são os outros requisitos: as escolas
devem melhorar, e muito, para ensinar aos alunos; os professores devem avaliá-los dentro da mesma
perspectiva britânica; essa avaliação
deve ser posta à disposição dos pais;
e, por fim, programas de apoio a famílias devem ser criados. A adoção
de certificados nacionais seria um
caminho, e já há embriões, como o
Enem.
Mas, pelo que se depreende das
palavras do nosso prefeito, em vez
de seguirmos em frente, a nossa sina
é retroceder. Será?
P.S.: O incrível é que escolas particulares, as melhores, reprovam com
gosto e, quando isso acontece, não
se constrangem quando são trocadas
por outras "mais fáceis". Fingem que
são severas, quando, na verdade,
querem mesmo se livrar desses alunos para, assim, apresentarem um
desempenho melhor, mas falso, no
vestibular.