"Ao presidente", O Globo, 18/03/2008 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Ao presidente", O Globo, 18/03/2008

Por duas vezes, o presidente Lula respondeu ao meu último artigo, em que mostro que, na ausência de fome, os beneficiários do Bolsa Família, segundo o próprio governo, estão comprando eletrodomésticos. No artigo, eu disse que melhor do que gastar R$ 10,8 bi para matar a fome de quem não tem é investir essa quantia enorme para fazer uma revolução na educação. O presidente não gostou. Num discurso em Araraquara, afirmou: "A imprensa foi atrás de uma mulher do Bolsa Família porque ela comprou uma geladeira e aí já acharam que ela era burguesa, não precisava mais do Bolsa Família. Eu quero que ela compre geladeira, eu quero que ela compre televisão, eu quero que ela compre roupa, eu quero que ela compre sapatos. É preciso acabar, neste país, com o preconceito contra os pobres."

Dois dias antes, em outro discurso, o presidente já tinha dito: "Mas hoje uma pessoa de um meio de comunicação importante no Brasil ficou indignada porque uma mulher do Bolsa Família comprou uma geladeira. Obviamente que ela não comprou com o dinheiro do Bolsa Família, mas o dinheiro do Bolsa Família pode ter ajudado a pagar a prestação. Isso porque não fizemos o nosso programa de renovação de geladeira que vamos fazer, se Deus quiser. A imprensa foi lá e entrevistou essa moça. Ela falou: 'Não só eu comprei a geladeira, como estou de sandália nova porque eu pude comprar, eu compro sandália para os meus filhos.' Antes do Bolsa Família, tinha mulher que comprava um lápis e partia ao meio para dar para dois filhos ou para dar para dois netos. Hoje, ela se dá o prazer de comprar uma caixa de lápis para cada um. Isso não é investimento? Isso não é distribuição de renda? Isso não é investimento sadio?"

Não creio que o meu tom tenha sido de indignação, mas de perplexidade. Sei das boas intenções do presidente e ele sabe que tenho combatido em livro e em artigos o preconceito contra os pobres, para mim a maior chaga deste país. Em muitas ocasiões, nos intervalos de entrevistas a colegas da TV Globo, ele me disse o quanto acredita no Bolsa Família: para ele, o programa ajuda sim a matar a fome e é fundamental para que os pobres tenham uma vida mais digna. Eu sempre pude esclarecer o meu ponto de vista, numa troca de idéias muito rica e só possível entre democratas numa democracia. No nosso continente, é raro um presidente procurar o diálogo ao se importar com o que a imprensa diz a respeito das políticas públicas.

A maneira científica de se verificar se uma população sofre de fome é pesá-la e medi-la. Se a relação entre peso e altura mostrar que há emagrecimento, isso é sinal de que há fome. A OMS considera normal um índice de até 5% de emagrecidos, porque sempre há indivíduos magros por fatores genéticos. Pois bem: no Brasil, a Pesquisa de Orçamento Familiar, do IBGE, mostrou que o índice nacional é de 4%, absolutamente dentro da normalidade. Na Índia, o índice é de 50%; na Etiópia, 30%; no México, 9%. Aqui, o índice só é superior a 5% em alguns poucos casos, como entre as mulheres da zona rural do semi-árido (7,2%) ou entre as mulheres com renda per capita de ¼ de salário mínimo (8,5%). Mas isso significa algumas centenas de milhares de pessoas, nunca 44 milhões. Se é assim, eu disse ao presidente quando tive oportunidade, o melhor seria aplicar alguns milhões para matar a fome de quem tem e investir a maior parte do Bolsa Família em educação, o único instrumento que tira um pobre da pobreza. O presidente sempre me respondeu que optou por fazer as duas coisas: investir em educação e aliviar a pobreza via transferências de renda.

Como o cobertor é curto, creio que a estratégia não está dando certo: as péssimas notas de nossas crianças em exames de proficiência são prova disso. O controle da freqüência escolar é precário: ainda largamente manual na origem, cabe à professora, que fica com o peso de denunciar o faltante, sabendo que isso significará o fim do benefício. O MEC prometeu um controle por meio de cartão magnético, mas o projeto foi abandonado. Para o Fundeb, que visa a melhorar o ensino básico, o governo só conseguirá alocar R$ 5,1 bi (menos da metade do Bolsa Família) no quarto ano de existência do fundo, em 2010. O presidente, pelo que noto em seus discursos, acha que os gastos estão bem equacionados, e, apontando para a melhora na vida dos pobres, pergunta, referindo-se ao Bolsa-Família: "Isso não é distribuição de renda? Isso não é investimento sadio?"

Isso é distribuição de renda, mas não é um investimento sadio. O Bolsa Família transfere a renda que alguns produzem para outros. Portanto, distribui, mas não gera renda. Pode aumentar artificialmente o consumo, mas não a produção. E é um fenômeno que cessará de imediato se o programa for suspenso: os pobres serão eternamente dependentes do governo para continuar a comprar eletrodomésticos. O que faz um país crescer não é o aumento do consumo, mas da produção. O presidente tem isso claro. No mesmo discurso em que me criticou, ele disse: "É preciso que a gente tenha cuidado porque, se cresce muito o consumo e a indústria não investe em novas fábricas, em nova produção, a gente tem de volta uma doença desgraçada — que nós não gostamos dela — que é a inflação."

Como, então, aumentar a produ- ção para que o país cresça sem infla- ção? Com mais investimento, para fazer frente aos gargalos da infra-estrutura, e com educação, que gera mãode-obra qualificada e inovação. Jamais estimulando ainda mais o consumo, que diminui a poupança necessária para os investimentos.

Num país pobre como o nosso, mas sem fome, investimento saudável é aquele que gera crescimento sustentável e cidadãos independentes: educação.