No debate sobre cotas raciais, há três correntes de
pensamento.
A primeira diz que o racismo no Brasil é forte e que é ele o
responsável pela desigualdade encontrada entre negros, pardos e
brancos. Por essa razão, advoga a
adoção de cotas raciais sem corte
de renda. Se é o racismo que explica
a desigualdade, afirma, não faz sentido excluir dos benefícios nenhum
negro (ou pardo) apenas porque ele
tem dinheiro, já que o preconceito
será sempre uma barreira ao seu
pleno desenvolvimento. Essa corrente acredita também que cotas raciais não provocarão ódio racial, e,
como prova, diz que inexiste conflito nas universidades que a adotaram. Já li, porém, reportagens mostrando que cotistas sofrem discriminação em salas de aula, um ponto
que se investiga pouco.
A segunda corrente não nega a existência do racismo, porque este sentimento abjeto, infelizmente, existe em
maior ou menor grau em todas as sociedades. Mas afirma que, no Brasil, o
que mais explica a desigualdade é a pobreza: os negros e pardos estão em pior
situação porque formam a maioria entre os pobres. Como há, porém, cerca
de 19 milhões de brasileiros brancos
pobres, esse grupo defende a adoção
de políticas para a promoção dos pobres independentemente da cor da pele. Ao se combater a pobreza, os negros
e os pardos serão ajudados naturalmente numa proporção maior do que
os brancos. Essa política teria a vantagem de não promover ódio racial: deixado à margem de políticas sociais, um
branco pobre sentiria enorme rancor
ao se ver estagnado na pobreza enquanto um vizinho, tão pobre quanto
ele, progride apenas porque é negro ou
pardo. Essa corrente advoga investimentos maciços nas escolas públicas
como forma de democratizar o acesso à universidade. Mas, se a sociedade insistir em experimentar o sistema, admite a adoção de cotas, desde
que elas tenham um corte de renda,
jamais racial.
Por fim, uma terceira corrente acredita também que a desigualdade se
explica pela pobreza, defende a promoção de políticas sociais voltadas
para os pobres em geral, independentemente da cor, com destaque para investimentos em educação básica,
mas é absolutamente contrária à adoção de cotas. Porque a experiência internacional mostra que elas são ineficazes, mas, fundamentalmente, porque elas solapam o princípio do mérito, única alavanca para o sucesso individual, provocando, se adotadas, a
degradação do ensino superior.
O que fez o projeto de cotas aprovado na Câmara no fim de novembro,
e que agora tramita no Senado? Uma
salada confusa, um emaranhado de
conceitos que só revela pouca reflexão sobre o tema.
O artigo primeiro destina 50% das
vagas nas universidades federais para
alunos de escolas públicas. Um parágrafo único estipula que metade dessas vagas deve ser preenchida por alunos com renda per capita de um salário mínimo e meio. Se o projeto tivesse
esse único artigo, a Câmara teria aprovado uma política de cotas sociais: independentemente da cor da pele, metade das vagas seria destinada a alunos das escolas públicas de qualquer
renda, mas em geral pobres, e a outra
metade beneficiaria especificamente
os mais pobres entre os pobres. O
grande senão dessa política seria o tamanho da cota, 50%, uma proporção
danosa sob todos os ângulos.
A confusão começa com os outros
artigos. O terceiro determina que as vagas sejam preenchidas por autodeclarados negros, pardos e indígenas, "no
mínimo", na mesma proporção que esses grupos têm na população de cada
estado. Se a população tem 15% de negros, 40% de pardos e 1% de indígenas,
ao menos 15% dos 50% das vagas a que
se refere o artigo primeiro devem ser
destinados a negros, 40% aos pardos e
1% aos indígenas. Ocorre que isso totaliza 56% dos 50% das vagas. O que fazer com os restantes 44%? Atendida a
proporção mínima, as universidades
podem dispor do restante das vagas
para distribuí-las, como quiserem, entre negros, pardos e indígenas. Podem
dar mais para pardos do que para negros ou vice-versa.
O artigo terceiro tem ainda um parágrafo único. Diz ele: "No caso de nãopreenchimento das vagas segundo os
critérios estabelecidos no caput deste
artigo, aquelas remanescentes deverão
ser completadas por estudantes que tenham cursado integralmente o ensino
médio em escolas públicas." Pode-se
presumir que esse parágrafo abre a
possibilidade de que, sobrando vagas,
alunos brancos possam vir a preenchêlas, mas isto não está claro. Num projeto em tudo racialista, espanta que, no texto do parágrafo, não fique explícito
que a referência é a alunos brancos.
Sem esta explicação, a redação do projeto fica tão vaga que, muito provavelmente, os brancos pobres brasileiros
vão ficar a ver navios.
Por que o projeto é uma salada? Porque não satisfaz nenhuma das três correntes de pensamento. Não acolhe a
primeira corrente, porque exclui os negros não pobres. Não acolhe a segunda
corrente porque dá às universidades o
poder de só beneficiar negros, pardos e
indígenas pobres, excluindo os brancos, mesmo quando pobres. E não acolhe a terceira corrente pelo simples fato
de estabelecer cotas.
Não é segredo que eu me filio à segunda corrente. Portanto, para mim, se
a sociedade quer mesmo experimentar
esse mal que são as cotas, o projeto deveria ter uma redação simples assim:
"Art. 1o
-: As universidades federais reservarão em cada vestibular para cursos de graduação, por curso e turno,
15% de suas vagas para estudantes
com renda per capita de um salário mínimo e meio. Parágrafo único: Na distribuição dessas vagas não será tolerada discriminação por cor, gênero, credo religioso ou posição política."
As universidades seriam mais coloridas, mais justas, sem excluir ninguém
em função da cor da pele.
Mas os nossos senadores vão admitir ser simples, e justos, assim?