Em todo o mundo, as notícias
sobre a autópsia de Terri
Schiavo dizem que o exame
prova que ela de fato estava
em estado vegetativo permanente,
sem nenhum grau de consciência. A
autópsia teria provado mais: ela
também estaria cega. Com esses resultados, sentem-se mais confortáveis os que defenderam a decisão da
Justiça americana de permitir que
Terri deixasse de ser alimentada e,
com isso, morresse de fome e sede.
As notícias, porém, estão completamente erradas.
Uma autópsia é unicamente capaz
de analisar a anatomia dos órgãos do
morto e, com isso, descrever em que
grau eles apresentam defeitos. No
que diz respeito ao cérebro, porém, o
exame é incapaz de descrever o estado mental do morto quando vivo.
Li as 39 páginas da autópsia de Terri,
como devem fazer todos os que escrevem sobre o assunto. E, nisso, fui
auxiliado pela neurocientista Lúcia
Braga, diretora-executiva da Rede Sarah de Hospitais e presidente da Federação Mundial de Neurorreabilitação. Ela não é responsável por minhas opiniões, mas me ajudou a evitar erros técnicos.
Recordemos. Os pais de Terri,
apoiados no exame clínico de dois
médicos, diziam que ela estava minimamente consciente e que seu nível
de entendimento poderia vir a melhorar. Três outros médicos, um
apontado pela Justiça e dois pelo marido de Terri, diziam que ela estava
em estado vegetativo permanente,
sem esperança de melhora. Apesar
da divergência, a Justiça ficou com a
maioria e aprovou que ela deixasse
de ser alimentada.
Pois, então, o que diz a autópsia?
"O estado vegetativo permanente e o
estado de consciência mínima são
diagnósticos clínicos e não diagnósticos patológicos." Ou seja, trata-se
de um diagnóstico somente possível
de ser feito em seres vivos e nunca a
partir do exame de um cadáver. O relatório é bastante cuidadoso. Diz
que, embora haja publicadas numerosas autópsias de cérebros de pacientes que vegetavam, a anatomia
desses cérebros varia caso a caso,
dependendo do que provocou a inconsciência. E diz mais: não há estudos semelhantes em pacientes que
morreram em estado de consciência
mínima. De um lado, portanto, as
anatomias de cérebros de pessoas
que vegetavam variam muito e, por
isso, adiantam pouco na comparação
com o cérebro de Terri. E, de outro,
não existem autópsias de cérebros
de pessoas com consciência mínima,
o que torna impossível dizer se o cérebro de Terri era compatível com
outro em tal estado.
Apesar da variabilidade, o relató-
rio diz, porém, que há dois padrões
principais na anatomia
de cérebros de pessoas em estado vegetativo: necrose difusa do
córtex laminar, mais
presente em pacientes
cuja inconsciência decorreu da falta de oxigênio, e lesão axonal
difusa, mais presente
em pacientes que sofreram ferimentos traumáticos. O cérebro de
Terri apresentava a primeira anomalia, mas
não a segunda. Mesmo assim, não se
pode dizer a partir disso que ela vegetava. E por uma razão simples: se
todas as autópsias de pessoas em
estado vegetativo permanente mostram que elas têm necrose difusa do
córtex laminar, nem todas as pessoas com necrose difusa do córtex
laminar apresentam estado vegetativo permanente.
O relatório, portanto, atesta com
todas as letras os limites da autópsia:
"Por si só, exames neuropatológicos
do cérebro de Terri — ou de qualquer cérebro, com o mesmo propósito — não podem comprovar ou refutar um diagnóstico de estado vegetativo permanente ou de estado de
consciência mínima." Na conclusão,
o patologista-chefe, Jon Thogmartin,
redige oito perguntas. A pergunta número cinco é a seguinte: "A senhora
Schiavo estava em estado vegetativo
permanente?" A íntegra da resposta:
"O estado vegetativo permanente é
um diagnóstico clínico ao qual se
chega por meio de exames físicos em
pacientes vivos. Correlações post
mortem entre o estado vegetativo
permanente e achados patológicos
têm sido feitas na literatura, mas os
achados variam com a etiologia do
evento neurológico adverso." Em outras palavras, a autópsia nada pode
dizer sobre isso.
Os jornalistas enlouqueceram,
então? Convencidos de que Terri
era uma morta e viva, talvez tenham
lido a autópsia com um olhar enviesado. Suas conclusões equivocadas
talvez tenham sido
também provocadas
por um erro de ênfase
do relatório. Os patologistas deram grande
destaque ao peso do
cérebro de Terri: 615
gramas, menos da metade do peso considerado normal para o cérebro de uma mulher
saudável de mesma
idade. Ocorre que 70%
do cérebro de qualquer pessoa são feitos
de água. Ao morrer, Terri estava havia 13 dias sem beber água, absolutamente desidratada, seca. O peso
de seu cérebro foi obviamente afetado pela desidratação.
Mas, mesmo que não tivesse sido,
o peso tem importância relativa. Pesquisas já demonstraram que o cérebro de idosos encolhe até 30% em relação ao de jovens mas, em testes,
mostram-se em igualdade de condições mentais. Há casos de crianças
que nasceram com apenas metade
do cérebro e ingressaram na universidade. Partes remanescentes podem absorver funções das partes
mortas. Esse mesmo princípio explica por que não se pode dizer que Terri estava cega, mesmo a autópsia tendo revelado que a parte do cérebro
de Terri responsável pela visão estava toda deteriorada. Somente uma
ressonância magnética funcional, feita com ela em vida, poderia determinar se ela enxergava ou não.
Aliás, a parte mais chocante do relatório é justamente a que tenta explicar por que os médicos de Terri
não a submeteram a um dos dois tipos de ressonância: o anatômico e o
funcional, indispensáveis para descobrir o estado de consciência de
Terri. A funcional mostra a atividade
no cérebro quando se submete o paciente a um estímulo externo (visual, por exemplo). O relatório diz
que a FDA, a agência americana que
controla o uso de remédios e exames, lançou um alerta advertindo
que ressonâncias em pacientes com
um estimulador neurológico implantado no cérebro podem causar danos permanentes, coma e até a morte. Terri usava um implante de nove
centímetros. Ocorre que o alerta da
FDA foi dado no mês passado, dois
meses depois da morte dela. Não se
sabe por que o exame não foi feito
antes do implante. Uma coisa é certa: médicos deixaram de submeter
Terri ao exame que poderia mostrar
se ela tinha algum grau de consciência, por temer que ele provocasse
mais dano neurológico ou a sua morte; e, depois, os mesmos médicos,
atestando que Terri era inconsciente, levaram a Justiça a decidir deixá-
la morrer de fome e sede. É uma lógica que não compreendo.
A autópsia de Terri mostra que o
seu cérebro estava danificado de
uma maneira trágica, mas é incapaz
de afirmar que ela vegetava. Terri
era uma mulher extremamente incapacitada e, por isso, indefesa, incapaz inclusive de se alimentar por si
só. Ela, mais do que ninguém, merecia continuar a ser alimentada e hidratada. É um direito fundamental.
Que a Justiça americana tenha concordado em negá-lo é uma mancha
que não se apagará.