"Avançando para trás", O Globo, 11/07/2006 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Avançando para trás", O Globo, 11/07/2006

O nó da previdência brasileira é a aposentadoria no serviço público. Toda vez que se tenta reformá-la, para torná-la mais justa, a corporação se mexe de tal forma que as intenções iniciais nunca se realizam. Fazer uma retrospectiva é pedagógico.

Em 1998, uma emenda à Constituição estabeleceu idade mínima para o serviço público (60 anos, para homens, e 55, para mulheres). No momento da promulgação da emenda, quem, aos 53 anos de idade, no caso de homens, ou 48, no caso de mulheres, já tivesse contribuído por 35 anos, pôde se aposentar com o salário integral. Os que ainda não tinham alcançado aqueles requisitos mantiveram o direito de se aposentar mais cedo, tendo apenas que trabalhar mais 20% sobre o tempo que, no momento da promulgação, ainda faltava para que pudessem requerer o benefício. Por exemplo, se, em dezembro de 1998, o cidadão estivesse com 50 anos de idade, ele teria de trabalhar mais três anos, sete meses e seis dias, e não apenas mais três anos. Procedimento semelhante foi adotado para as aposentadorias proporcionais: os servidores que em 1998 já tinham 30 anos de contribuição (homens) e 25 (mulheres) puderam se valer desse benefício. Aos demais, foi resguardado esse direito, desde que cumprissem um pedágio de 40%. A emenda, portanto, ainda permitia aposentadorias muito precoces.

Em 2003, o governo enviou então um novo projeto de emenda constitucional, que tentava postergar a idade em que os servidores se aposentam, dilatando, na prática, a idade mínima. Estabeleceu que o servidor continuaria podendo se aposentar a partir dos 53 anos (48, no caso de mulheres), depois das carências e pedágios estabelecidos em 1998, mas perderia 5% do valor do salário por ano antecipado. Assim, se alguém se aposentasse aos 53 anos, perderia 35% do salário; se a aposentadoria se desse aos 59 anos, ele ainda teria um desconto de 5%. Valor integral, somente aos 60 anos. Mesmo assim, trata-se de uma vantagem enorme: o funcionário, não importando quanto tempo tenha servido à nação, quando se aposenta no tempo certo, tem o direito de receber o mesmo valor do último salário na ativa. Há casos em que o cidadão fez concurso público faltando poucos anos para se aposentar, sem que isso tenha qualquer efeito sobre o valor da aposentadoria: vale o último salário.

Os novos funcionários perderam esse direito. Eles passarão a se aposentar com base em todos os salários recebidos ao longo da vida, desprezando-se apenas os 20% menores. É uma mudança importante, mas a balança ainda pende a favor do servidor público. No INSS, um cidadão que contribuiu sempre na maior faixa terá também a aposentadoria calculada tomando como base todos os salários a partir de 1994, desprezando-se os 20% menores. Mas o valor, porém, jamais poderá ultrapassar o teto máximo do INSS, hoje em R$ 2.801,456. As aposentadorias dos novos servidores públicos não precisam se limitar a esse teto.

Precisariam, não fosse a inação do governo. A emenda aprovada em 2003 previu, como possibilidade, a imposição do mesmo teto do INSS para os novos servidores e a criação de um fundo de previdência para complementar a aposentadoria deles. A coisa funcionaria assim: o servidor seria descontado não mais com base na totalidade do salário, como é hoje, mas com base no teto do INSS, que seria o valor máximo que ele receberia ao se aposentar. Como opção, o servidor poderia contribuir também para o fundo de previdência, de tal modo que o seu benefício ao se aposentar seja maior. Governo e servidores contribuiriam para esse fundo. Esse ponto da emenda, porém, não foi regulamentado e, na ausência dessa regulamentação, fica valendo o que eu descrevi acima: o servidor não recebe uma aposentadoria com base no último salário, leva em conta, como no INSS, a média dos 80% maiores salários, mas não tem de respeitar o teto do INSS. Se o governo quiser, pode deixar tudo assim indefinidamente.

Esse não foi o único recuo. O Congresso achou a emenda de 2003 draconiana demais, e o governo fez um acordo: pediu que a emenda fosse aprovada tal como estava, para que outros pontos da lei não se perdessem, mas se dispôs a enviar ao Congresso um novo projeto de emenda constitucional (PEC), a chamada PEC paralela. Este projeto foi aprovado em 2005 e instituiu a seguinte fórmula: para os que já estavam no serviço público em 1998, o tempo de contribuição (mínimo de 35 anos para homens) e a idade, somados, devem dar 95, para que o servidor possa se aposentar com o salário integral. Para mulher, o tempo mínimo de contribuição é de 30 anos; portanto, a soma com a idade deve ser de 85 anos. Um servidor que tenha começado a trabalhar aos 16 anos, contribuindo sempre para a previdência, aos 51 anos terá 35 anos de contribuição, mas ainda não poderá se aposentar, pois a soma de 51 e 35 dá 86 anos. Para que a soma dê 95, ele terá de trabalhar mais 4,5 anos: aos 55,5 anos, a soma da idade com o tempo de contribuição (39,5) dará 95, e ele poderá se aposentar sem descontos. Em qualquer outra hipótese, ele continuará perdendo 5% por ano antecipado (se ele se aposentar aos 54 anos, por exemplo, perderá 30% do salário). As regras para aposentadoria proporcional não foram alteradas. Houve, portanto, um retrocesso.

E a situação continua péssima.

O déficit do setor público é de R$ 39,2 bilhões. A proporção é de um funcionário na ativa para cada aposentado. Entre 2002 e 2005, as despesas com os inativos e pensionistas da União, como proporção do PIB, caíram de 2,3% para 2,1%. Mas, como o PIB cresceu, isso não quer dizer que as despesas diminuíram. Segundo cálculos do economista Raul Veloso, no período, descontada a inflação, os gastos subiram 8,1%. E continuam crescendo.

O resultado é aquele: 60% de tudo o que o governo gasta vai para a previdência (pública e privada), deixando muito pouco para que o país possa investir em segurança, reforma agrária, agricultura, mas, fundamentalmente, em educação e infra-estrutura, os dois setores que promovem o desenvolvimento.

Problemas com previdência não são exclusividade nossa. A diferença é que lá fora o assunto é tratado de frente. No Reino Unido, o governo pretende subir a idade mínima para 68 anos. Na França, o tempo de contribuição aumentou de 36,5 anos para 40.

Aqui, mesmo em época de eleição, os políticos silenciam.