Retomo aqui os pontos que
Demétrio Magnoli abordou
nesta página com muita propriedade em seu artigo "A
manchete errada", na última quintafeira. Os racialistas estão se movimentando com tanta ênfase que a insistência vale a pena.
Em 1998, num ensaio para a "New
Yorker", a escritora Tony Morrison,
Nobel de Literatura, escreveu o seguinte: "Bill Clinton é o nosso primeiro presidente negro. Mais negro do
que qualquer pessoa realmente negra que possa vir a ser eleita durante
a vida de nossos filhos." Ela não disse
isso apenas porque ele nomeou muitos negros para cargos públicos ou
porque implementou políticas voltadas para os negros. Nem tampouco
porque escolheu uma igreja da comunidade negra para rezar no dia em
que tomou posse pela segunda vez.
Foi assim que Morrison justificou o
epíteto: "Clinton ostenta praticamente todos os clichês da negritude: um
rapaz do Arkansas, criado sem o pai,
fruto da pobreza, proletário, saxofonista e amante de McDonald e de
junk food."
Pode haver descrição mais século
XX, quando um comportamento ou
uma história de vida eram vistos como
marcadamente negros ou marcadamente brancos? Desse ponto de vista,
talvez Bill Clinton tenha sido mesmo o
primeiro — e o último — presidente
negro dos EUA, produto de uma época
em que todos tendiam a ver as pessoas
separadas, natural e irremediavelmente, por "raças". Tudo ainda muito longe
do sonho de Martin Luther King, que
clamou por um mundo em que ninguém fosse julgado pela cor da pele,
mas pelo caráter.
Esta terça-feira, quatro de novembro de 2008, dia em que se realiza a
eleição para presidente dos EUA, já
nasce histórica, seja qual for o resultado das urnas. É a primeira vez que,
num país ainda acentuadamente marcado pelo racismo, um candidato
com uma visão de mundo pós-racial,
como disse Magnoli, tem chances efetivas de se tornar presidente. Barack
Obama é o primeiro candidato a olhar
o país com uma visão para além das
"raças", o que é um passo adiante na
construção de um mundo mais civilizado. Não que a biografia dele difira
muito da de Bill Clinton: à parte o saxofone e o gosto por junk food, ambos
tiveram uma vida parecida, em que foram salvos da pobreza por uma educação de qualidade. O que os diferencia é que Obama nunca quis ser o candidato dos negros, de um grupo específico. Jesse Jackson e outros menos
afortunados se comportaram assim:
numa América ainda mais dividida do
que a de hoje, quiseram ser o candidato dos negros em oposição aos candidatos dos brancos. Ou em oposição
a candidatos brancos que, como Clinton, no máximo, tinham uma visão a
favor dos negros, mas absolutamente
paternalista, condescendente, piedosa, como se "naturalmente" precisassem de ajuda. O lema de Jackson em
1984 e 1988 era: "Nossa hora chegou.
As mãos que antes colheram algodão,
agora vão colher um presidente."
Obama nunca se pôs neste lugar,
nunca usou a cor da pele para ganhar
votos. Seu lema tem sido: "Nós somos
um só povo, e nossa hora para mudar
chegou." Em Washington, onde estou, é
possível perceber de uma maneira
bem singela a ressonância dessa estratégia. Todos com quem conversei sobre os motivos de votar ou não em
Obama elencaram muitas razões, mas
jamais mencionaram a cor da pele. Alguns poderão dizer que a postura de
Obama foi pura estratégia eleitoral, já
que jamais seria eleito se não tentasse
se posicionar para além das "raças", e,
assim, ganhar o voto dos brancos. Isso
é inegável, mas Obama está sendo sincero. Não digo isso movido por alguma
espécie de crença cega, ou porque, ingenuamente, eu me deixe enganar por
alguém que, como todos, quer apenas
vencer uma eleição, dizendo o que os
outros querem ouvir.
Eu digo que Obama é sincero, porque li seus livros. Em 1990 ele virou
notícia em todo o país, ao ser eleito
por seus pares estudantes o primeiro
editor negro da "Harvard Law Review", a revista de Direito de Harvard, editada por um seleto grupo de
80 estudantes. Com a notoriedade,
veio o convite para escrever uma biografia precoce, "Sonhos vindos do
meu pai" (editada no Brasil com o título "A origem dos meus sonhos"),
tarefa a que se dedicou por três anos,
entre 1992 e 1995. No livro, Obama
expõe as mesmas idéias que defende
hoje, 16 anos depois, na campanha
eleitoral. A sinceridade que vejo nele
vem daí. No livro, Obama diz, entre
muitas outras coisas: "Minha identidade pode começar com a minha ra-
ça, mas não se completa, não pode se
completar, com ela. Ao menos, foi
nisso que escolhi acreditar."
Essa é a página que os EUA parecem estar virando, hoje. Não importa
que, favorito, Obama não ganhe (toctoc-toc, vamos isolar). Sua jornada já
mostrou que é possível, é desejável,
é necessário, viver numa sociedade
em que as pessoas se vejam simplesmente como pessoas, porque somos
todos feitos da mesma matéria, porque "raças" não existem, porque o
que importa é o nosso caráter.
No Brasil, onde acreditávamos nesse ideal como mito fundador da nossa
nação, os racialistas se movimentam
em todas as direções, inquietos, produzindo estatísticas que sabem enviesadas, apostando na divisão dos brasileiros em negros e brancos, logo
nós, uma nação até há pouco orgulhosamente mestiça. Parecem querer caminhar com os olhos voltados para o
passado, mas todas as políticas que
enfatizaram a noção de "raça", sempre bem-intencionadas, tiveram como
poderoso efeito colateral fazer aumentar o racismo. E agem desse modo num país em que, por suas distor-
ções históricas, políticas voltadas para os pobres em geral teriam um efeito benéfico proporcionalmente maior
entre os brasileiros cuja tonalidade
de pele é mais escura. E sem nenhum
risco de fomentar o racismo.
Esta é a nota triste num dia tão
alegre .