Todos são testemunhas de
que, quando o Bolsa Família
foi lançado, o objetivo era
matar a fome de 54 milhões
de brasileiros. Meus leitores são também testemunhas de que, desde o
início, venho dizendo que não existem 54 milhões de famintos. Pois
bem, uma visita à página do Ministé-
rio do Desenvolvimento Social (http://www.mds.gov.br/noticias/consumo-de-bens-duraveis-au-menta-por-causa-do-bolsa-familia)
vai surpreender. Ali, o governo anuncia que vários estudos comprovam
que o Bolsa Família tem ajudado os beneficiários a comprar eletrodomésticos. Isso mesmo, nada de arroz, feijão e
carne, isso tudo que há muito já está na
mesa dos pobres brasileiros, como
provou a Pesquisa de Orçamento Familiar do IBGE; o que tem sido comprado
é geladeira, microondas, máquina de
lavar, fogão, liquidificador, forno elétrico, televisão e DVD.
Rosa Maria Marques, da PUC-SP, é citada dizendo que, no passado, todo dinheiro extra era usado pelos pobres na
compra de alimentos, mas que isso mudou, graças ao efeito multiplicador do
Bolsa Família: "Com o passar do tempo,
as famílias ganharam segurança de que
vão receber o benefício e, assim, puderam destinar parte de sua renda para a
compra a prazo de eletrodomésticos."
Rosa cita outros fatores para explicar o
crescimento do consumo daqueles
bens, como a elevação constante do salário mínimo, a estabilidade monetária ,
o aumento do número de trabalhadores com carteira assinada e a amplia-
ção do crédito consignado, mas a ênfase do press-release do ministério é a
injeção de recursos do Bolsa Família,
R$ 10,9 bi previstos para este ano.
O release cita também Felícia Madeira, do Seade (São Paulo), para quem
oscilações no orçamento sempre impediram que famílias pobres fizessem
gastos que necessitassem de um horizonte longo, fato remediado agora pelo
Bolsa Família: "Como existe a garantia
de que o dinheiro virá, a pessoa se planeja e pode abrir um crediário para
comprar um eletrodoméstico ou um
equipamento para trabalhar."
O ministério dá exemplos. A catadora de lixo Rosineide dos Santos, 47
anos, de Maceió, com três filhos, recebe R$ 76 do Bolsa Família, mas declara uma renda total de R$ 200. Com
isso, pegou um empréstimo de R$
500 no Banco do Cidadão, uma instituição que opera com microcrédito
para empreendimentos populares. O
release diz que ela já tem fogão, liquidificador, cafeteira e forno elétrico,
mas que, assim que saldar a dívida,
pretende comprar uma televisão. Ou
seja, não usa o Bolsa Família para se
alimentar nem o Banco do Cidadão
para um pequeno empreendimento:
usa para aumentar a conta de luz. Patrícia Belmira Henrique, de 43, manicure mineira, recebe R$ 112 do Bolsa
Família. O dinheiro, diz o release, ajuda a pagar a máquina de lavar roupa.
"Estou feliz, porque é a minha primeira máquina de lavar. Antes, tinha que
lavar a roupa na mão. Dava um trabalho enorme."
O release cita ainda o economista Cícero Péricles de Carvalho, da Universidade Federal de Alagoas, para quem o
Nordeste está se transformando num
cenário de muitos investimentos produtivos. O release prossegue: "A explicação para esse crescimento, além da
diminuição das desigualdades regionais, vem sempre da mesma origem: as
transferências de renda federal crescentes e os investimentos sociais que
impactam sobre a maioria da população nordestina." O texto conclui, orgulhoso, citando o caso de Alagoas, que
há 45 meses bate recordes de consumo
popular, sem, porém, "ter um crescimento econômico que justifique tamanha elevação de compras". A razão, diz
o texto, é clara: os R$ 2 bi que a Previdência dá aos aposentados de lá (o
dobro do que dava em 2002) e os R$
300 milhões do Bolsa Família distribuí-
dos por ano a mais da metade da população do estado.
Aposentadoria e Bolsa Família. Há
futuro nisso?
O discurso oficial agora é que o dinheiro do Bolsa Família aumentaria a
demanda por bens duráveis, o que levaria à ampliação de fábricas e ao aumento de empregos. Balela. Mesmo
se fosse verdade, o consumo cresceria nas áreas carentes e a produção,
nas áreas já afluentes, perpetuando
as desigualdades. Na realidade, o
programa transfere, mas não gera
renda: o consumo só aumentaria se a
propensão de consumir dos beneficiários do Bolsa Família fosse maior
do que a propensão dos que pagam o
imposto que torna o programa possível, o que é improvável. O contribuinte, sem o imposto, gastaria o dinheiro em alguma coisa. Assim, tratase de uma soma de resultado zero,
não havendo aumento de produção.
O programa distribui renda? Sim, mas
de uma maneira não sustentável: o efeito cessará assim que o programa tiver
um fim. Distribuição sustentada de renda só se obtém educando o povo, para
que se possa abastecer de gente qualificada uma economia crescente.
Ninguém pode ficar contrariado sabendo que pessoas pobres, na ausência de fome, estão comprando eletrodomésticos. É bom olhar a Pnad, como
faz o release, e constatar que entre
2002 e 2006, nas faixas de renda mais
baixas, cresceu muito o número de lares que tem esses bens. Mas é angustiante olhar os dados das provas nacionais e internacionais que medem o conhecimento de nossas crianças e constatar que tudo vai de mal a pior. Se não
há fome, por que gastar R$ 10,9 bi com
o Bolsa Família em vez de aplicar a
maior parte disso em educação? Para
aumentar artificialmente a venda de
eletrodomésticos em áreas carentes?
Essa política condenará as crian-
ças de hoje a continuar, como os
seus pais, a depender do Bolsa Família para ter um microondas, enquanto um investimento maciço em educação faria delas seres independentes, produtivos, indispensáveis para
chegarmos ao bom futuro.