Qual o efeito do Bolsa Família
na educação de nossas
crianças? A recente divulga-
ção da Pesquisa por Amostra de Domicílios (Pnad) de
2005 é um bom momento para que tentemos responder a essas perguntas. O
leitor verá que o resultado é constrangedor. No momento em que o Bolsa Família atende a 11,1 milhões de famílias,
só uma coisa explica por que, desde
que foi implantando, é nulo o efeito do
programa nas estatísticas sobre crianças fora da escola e crianças trabalhando: o seu compromisso com a educação é apenas formal, não é real, não
é para valer. O leitor que se aventurar
pelos números que mostrarei a seguir
terá uma visão clara sobre isso.
Em 1995, 9,8% das crianças de 7 a 14
anos estavam sem estudar. Em 2002, graças ao efeito de medidas como o Bolsa
Escola, um programa mais focado, e o
Fundef, essa proporção tinha desabado
para 3,1%, uma queda média anual de
15%. Em 2003, já na vigência do Bolsa Família, havia 2,8% de crianças da mesma
faixa etária sem estudar; essa proporção
subiu para 2,9% em 2004 e, em 2005, caiu
ligeiramente para 2,7%. Isso resulta numa queda média anual de apenas 2%, um
nada. Fica claro, assim, que o programa
tem sido pouco eficaz para alcançar o
objetivo de pôr todas as crianças na escola: 737 mil continuam fora das salas de
aula. A coisa fica ainda mais trágica
quando analisamos o percentual de crianças em idade escolar que estão trabalhando.
Em 1995, 11,2% das crianças entre 5
e 14 anos trabalhavam. Em 2002, este
número tinha caído para 6,5%, uma
queda de quase cinco pontos percentuais, uma redução de 58%. Em 2003, o
percentual de crianças trabalhando
naquela faixa etária era de 5,8% e aumentou para 6,3% em 2005. Onde está
o efeito do Bolsa Família?
A imensa maioria das crianças daquela faixa etária trabalhava
na agricultura e para consumo próprio, o que fez
muitos analistas do IBGE
atribuírem o aumento do
trabalho infantil à crise no
campo, causada pela queda no preço das commodities e pelo câmbio desvalorizado. Alguns jornais
chegaram a fazer reportagens no Rio Grande do Sul
para ilustrar o problema.
Mas uma análise regional
dos dados mostra que essa justificativa não se sustenta. Em todo
o Brasil, houve, de 2004 para 2005, um
aumento de 10,28% de crianças de 5 a 14
anos trabalhando, sendo que o número
de crianças em atividades agrícolas cresceu 10,35% contra 10,18% em outras atividades. Em números absolutos, 202 mil
crianças passaram a trabalhar, sendo
que 124 mil delas no campo, seguindo o
padrão histórico. Mas como se deu o fenômeno nos celeiros brasileiros, as regiões Sul e Centro-Oeste?
No Sul, houve um decréscimo no número geral de crianças trabalhando e
um pequeno aumento de 2,1% das crianças trabalhando no campo. Mas esse pequeno aumento corresponde a apenas 5
mil crianças, ou seja, apenas 2,5% do total. No Centro-Oeste, houve um decréscimo de 3,7% de crianças trabalhando
no campo e de 16,8% de crianças trabalhando em outras atividades. No Norte, a
redução de crianças no trabalho foi ainda maior, 22,6%, contra um aumento de
trabalho infantil em outras atividades da ordem
de 50,9%. Onde o trabalho
infantil no campo cresceu
mais foi no Sudeste,
38,9%, o que corresponde
a 43 mil crianças, e no
Nordeste, onde o índice
cresceu para 18,9%, totalizando 118 mil crianças,
cerca de 58% de todo o
aumento do trabalho infantil no Brasil inteiro. Paradoxalmente, é no Nordeste e no Sudeste que o
Bolsa Família se expandiu mais.
A crise no setor agrícola, portanto, cujo foco foi o Sul e o Centro-Oeste, não pode ser responsabilizada pelo aumento
do trabalho infantil. A meu ver, uma das
hipóteses que deve ser levada em conta
prioritariamente é a pouca capacidade
que o Bolsa Família tem de controlar as
condicionalidades da educação. O governo se orgulha de que cerca de 65%
das crianças têm o seu controle escolar
monitorado, mas, depois de quatro anos de governo, essa proporção é muito baixa. E, na verdade, o controle é falho — o
tal cartão eletrônico que acompanharia
a vida escolar das crianças nunca passou da fase de projeto. Hoje, é ainda a
professora que deve avisar a secretaria
municipal de educação que o aluno não
vai à escola, e poucas têm coragem de
fazê-lo, sabendo que será a responsável
por tirar um benefício de uma família.
Sem controle eficaz, as famílias podem
estar recebendo o benefício e, mesmo
assim, usando a mão-de-obra infantil para ajudar na produção doméstica. Atualmente, uma família não pode receber ao
mesmo tempo o Bolsa Família e o Peti
(Programa de Erradicação do Trabalho
Infantil). Como o primeiro paga um benefício máximo de R$ 95 e o segundo, R$
75, as famílias optam pelo Bolsa Família,
que não faz as mesmas exigências do Peti. Este exige que, depois da escola, a
criança se dedique a atividades extracurriculares.
Esses números mostram que há algo
de muito errado. Um país que tem um
Bolsa Família que atende à multidão de
11,1 milhões de famílias, os números de
crianças fora da escola e trabalhando
simplesmente não podem ser os que a
Pnad mostra. O Bolsa Família tem de ser
repensado em tamanho, em propósitos
e em controles. Só assim ele deixará de
ser simplesmente dinheiro na mão das
famílias para ser um indutor mais eficaz
da educação no Brasil.