Há poucos dias, o IBGE divulgou um capítulo especial sobre programas sociais da
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2006, a
mais recente. Como sempre, um belo
trabalho, mas que ficou nas análises
mais gerais do programa. Seja como
for, o IBGE disponibilizou os microdados da pesquisa, o que permite a qualquer um esmiuçar as informações que
considerar mais importantes. É o que
apresento aqui, tentando mostrar o foco de dois programas sociais.
O quadro não é animador. De todas as
famílias que recebiam o Bolsa Família,
44,1% recebiam o benefício sem preencher os requisitos legais: ou tinham renda per capita superior a R$ 120 ou tinham renda per capita entre R$ 61 e R$
120 reais, mas sem filhos menores de 15
anos. Não se trata, portanto, de um erro de foco pequeno, de 5% ou 10%. É
quase a metade de todo o público beneficiado, 44,1%, repito, um total de
3.100.294 famílias. Já o número daqueles que preenchiam os requisitos do
Bolsa Família, sem, no entanto, receber
o benefício, era de 3.399.241 famílias.
Ou seja, ao que tudo indica, o programa inclui um caminhão de gente que a
lei não prevê e deixa de fora outro caminhão de gente que, pela lei, deveria
estar recebendo o benefício.
O governo alega que toma os devidos cuidados para evitar essa situação:
cruza o cadastro de beneficiários com
outros cadastros que registram renda e
emprego e faz convênio com os municípios e estados para que verifiquem
se houve melhoria na renda das famí-
lias que justifique uma exclusão do
programa. Auditorias, por amostragem, feita por órgãos de controle (TCU,
CGU etc.), ajudariam também a fiscalizar o programa. O ministério informa
que, em conseqüência desses procedimentos, desde 2006 (data da Pnad)
1,55 milhão de famílias saíram do programa, sendo substituídas por outras
em igual número, e que isso corrigiu
eventuais distorções.
Não estou convencido disso. Mesmo
imaginando que o processo de exclusão
e inclusão tenha ocorrido à perfeição, o
que não é provável, mais de 1,5 milhão
de famílias ainda estariam no programa
indevidamente. E mais de 1,8 milhão
continuaria de fora dele, mesmo preenchendo os requisitos. Alguém poderia
imaginar que eu, contrário ao tamanho
gigantesco do Bolsa Família, estou dando um tiro no pé com esses dados, pois
eles provam que, se o gerenciamento do
programa fosse perfeito, ainda assim ele
teria de ser ampliado em praticamente
300 mil beneficiários. Não se trata disso.
Para mim, como já se provou que não
há fome endêmica no Brasil, o programa
está superdimensionado. Nem por isso,
porém, vou deixar de mostrar que, mesmo na lógica governamental, o gerenciamento do programa é malfeito.
A verdade é que o governo não trabalha dentro das margens estabelecidas em lei, simplesmente porque conseguir um foco mais nítido seria muito
caro. Assim, os gestores do programa
se conformam com o fato de que, bem
ou mal, todos os que recebem o benefício são pobres. Mas há pobres e pobres. A lei diz que tem direito ao benefício quem tem renda familiar per capita de até R$ 60, com ou sem filhos, e
quem tem renda familiar per capita en -
tre R$ 61 e R$ 120, desde que tenha filhos menores de 15 anos. A renda mé-
dia familiar per capita do primeiro grupo é de R$ 28,42 e a do segundo grupo
é de R$ 90,97. Já a renda média familiar
per capita do grupo que recebe o Bolsa
Família sem preencher os requisitos legais é absolutamente mais alta: R$
211,66. Uma distorção acintosa.
Há um outro caso: a Lei Orgânica da
Assistência Social (Loas) determina que
têm direito a um salário mínimo todos
os idosos cuja renda familiar per capita
seja inferior a 1/4 de salário mínimo. Nada menos do que 64% dos beneficiários
tinham renda superior ao estipulado em
lei. Por outro lado, 101.989 idosos permaneciam sem o benefício mesmo preenchendo os requisitos legais para recebê-lo. A renda dos que recebem o benefício de acordo com a previsão legal é
baixíssima: R$ 14,52 contra uma renda
média per capita de R$ 285,69 daqueles
que recebem o benefício sem ser o pú-
blico-alvo. Neste caso, mesmo diante
desses números, o governo dirá que
cumpre a lei rigorosamente.
Como?
A Constituição de 1988 é clara no artigo 203 ao garantir "um salário mínimo
de benefício mensal à pessoa portadora
de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a pró-
pria manutenção ou de tê-la provida por
sua família". Mas, que família? Nas sucessivas regulamentações do artigo, feitas antes do governo Lula, ficou estabelecido que família é o cônjuge, o filho
menor ou inválido ou os pais ou o irmão
menor ou inválido. Convenhamos, uma
família quase impossível para um idoso
de 65 anos ou mais (ter pai vivo ou filho
menor, nesta idade, é a exceção, não a
regra). Assim, chegamos à seguinte situação: se o idoso sem renda morar
com um filho casado e os netos, uma situação muito comum no Brasil, ele terá
direito ao benefício mesmo se o filho
que o sustenta tiver uma situação financeira absolutamente confortável. O Estado chamou a si uma responsabilidade
que, antes, era da família. Justo? Não
posso negar, uma justiça social sueca.
O problema é que moramos no Brasil, um país que não resolveu seus problemas básicos de educação. O orçamento da União prevê gastar este ano
R$ 24,2 bi com a ajuda a idosos e deficientes físicos e com o Bolsa Família.
Com investimentos em educação, o
MEC gastará R$ 12,7 bi.
Isso diz muito sobre quem somos e
sobre quem queremos ser.
P.S.: No cálculo da renda dos beneficiários
de programas sociais jamais considerou-se o
dinheiro obtido com tais programas. O
interessado nos outros critérios técnicos que
nortearam este artigo poderá encontrá-los
em http://oglobo.globo.com/opiniao/.