Há um paralelo entre o momento histórico que os EUA
vivem, com a nomeação de
Barack Obama como candidato à Presidência, e o que nós vivemos aqui, quando o Congresso e o STF
estão para decidir sobre a racialização
da sociedade brasileira. Infelizmente,
paralelos com sentidos opostos. Enquanto Obama, sem negar as divisões
"raciais" que ainda mancham o seu
país, representa uma tentativa de enxergar o mundo para além da noção
de "raça", no Brasil, vemos uma boa
parte dos brasileiros, que sempre se
orgulharam de nossa miscigenação,
querendo enxergar a nação dividida
entre duas "raças", negros e brancos
irremediavelmente apartados. Na
quarta-feira, Caetano Veloso analisou
o assunto em seu show "Obra em progresso". Às vezes, só mesmo um artista para serenar ânimos e servir de
ponte entre duas visões que não são
totalmente opostas.
Caetano começou cantando "Sugar cane fields forever", do disco
"Araçá azul", que compôs na década
de setenta. A letra, curta, diz muito a
respeito dele e de nós: "Sou um mulato nato, no sentido lato, mulato democrático do litoral." Considerando
que 87% dos brasileiros têm uma ancestralidade genômica africana
maior do que 10%, poderíamos tranqüilamente dizer que a canção é um
hino nacional informal. Pela genética e pela cultura, somos todos mulatos. Essa é uma verdade inescapá-
vel e, como diria Darcy Ribeiro, é a
nossa originalidade como povo, a
nossa contribuição como nação para o mundo. Depois de cantarolar a
música, Caetano lembrou o que Obama disse a um jornalista brasileiro:
"Eu não pareço um brasileiro?" Em
seguida, Caetano contrapôs a visão
dele, que enfatiza a mestiçagem, à
de outros, que rejeitam termos como mulato, cafuzo e mameluco, em
favor apenas do rótulo geral de negro, considerado por eles mais forte,
mais enfático. Mais forte? Mais enfático? Caetano pareceu discordar:
"Eu gosto mais de preto do que de
negro." E concluiu: "O fato é que Barack Obama está querendo imitar os
brasileiros. E muitos brasileiros estão querendo imitar os EUA pré-Barack Obama."
Não se tratou de negar o racismo
que existe aqui, como em todo lugar
onde existam homens reunidos. Em
outra parte do show, Caetano fez uma
análise intrigante da canção "Feitiço
da Vila", de Noel Rosa, que ele chamou de um dos "pais fundadores de
nosso país". Para quem não lembra, a
letra diz assim: "Lá em Vila Isabel,
quem é bacharel não tem medo de
bamba. São Paulo tem café, Minas dá
leite e a Vila Isabel dá samba. A Vila
tem um feitiço sem farofa, sem vela e
sem vintém, que nos faz bem. Tendo o
nome de princesa, transformou o samba num feitiço decente que prende a
gente." Caetano relembrou a rivalidade entre Wilson Batista, "mais para
preto", e Noel, "mais para branco", e
demonstrou que a canção quis livrar o
samba de sua negritude, transformando-o num feitiço do bem, feito por bacharéis brancos, longe, portanto, da
macumba dos negros do morro, que
faz, por oposição, o mal, coisa de bamba. Caetano disse: "Essa é uma can-
ção, um clássico, do qual ninguém esquece, e que todos amamos muito.
Mas é uma canção que sempre me deixou com uma imensa pulga atrás da
orelha. Porque é uma canção de afirmação da classe média letrada contra
os sambas do morro, próximos do
candomblé." E arremata, com coragem: "Basicamente, é uma canção racista." Caetano não disse isso sem um
certo susto: "A gente tem de admitir
que isso aconteceu."
É exatamente isso. O mesmo país
miscigenado que tornou pioneiramente o conceito de "raça" inaplicável e
retrógrado é capaz de produzir uma
pérola de nossa cultura que, numa
análise conteudística crua, se revela
prisioneira de um preconceito bárbaro, no sentido de pré-civilizado. Caetano parece indicar que a solução para
esse paradoxo não é apostar na estratégia de aprofundar a divisão em "ra-
ças" para promover a superação do
preconceito que persiste aqui sem ser
predominante, mas enfatizar os laços
que fazem de nós uma mestiçagem
inédita no mundo para tornar ainda
mais bárbara, e repugnante, toda manifestação de racismo.
É algo em que Obama, vivendo numa sociedade ainda hoje dividida em
"raças" estanques, tenta apostar:
não negando as divisões, mas tentando olhar adiante, sem distinguir as
pessoas pela cor da pele. No dia em
que se sagrou candidato, ficou evidente que ele está mesmo à frente da
sociedade que pretende representar.
Quando atingiu o número suficiente
de delegados para ser o candidato,
todos os comentaristas, antes de ouvir o discurso de Obama, enfatizaram o fato histórico de que ele se tornara o primeiro candidato "afro-descendente" a disputar a Presidência
por um partido grande. Obama, não.
Em seu discurso da vitória, para espanto geral, contrariando o que seria
visto como um dado natural, ele não
mencionou uma única vez sua condição de "afro-descendente". Preferiu
repisar o seu programa político. Essa
omissão era em si a parte mais visível de seu ideário: uma América pós-
"racial". Obama quer imitar os brasileiros, não porque aqui não haja racismo, mas porque, aqui, sempre
preferimos, ao menos como ideal,
enaltecer a mistura e não a divisão.
Em síntese, para mim, juntas, as
duas partes do show de Caetano tiveram o objetivo de ressaltar que há algo comum entre aqueles que enfatizam a mistura, e apostam em políticas
com corte de renda para superar a desigualdade, e aqueles que preferem dividir o país entre negros e brancos, para, racializando a sociedade, combater
o preconceito: somos todos anti-racistas. Não sei se Caetano concorda com
essa leitura. Não sei se os que chamo
de racialistas terão essa mesma leitura. Mas, quando disse que só mesmo
um artista para serenar ânimos, eu me
referia a isto: em mim, as palavras de
Caetano tiveram o efeito de mostrar
que às vezes ficamos tão presos em
nossos argumentos que somos incapazes de ressaltar as nuances que,
desde sempre, sabemos que existem.