Cruz
A
campanha para 2002 já está na rua, e
os analistas prevêem: o candidato do
Governo à Presidência será Tasso Jereissati ou José Serra, ambos com largo trânsito partidário e com obra social a mostrar. Pedro Malan, ministro da Fazenda, seria
carta fora do baralho, por não ser político e por
sofrer de um mal que alguns rotulam de "insensibilidade social".
Tasso Jereissati é sem dúvida um político vitorioso. É reconhecido como honesto e competente. Quando terminar o mandato, seu grupo
político terá governado o Ceará por 16 anos (12
com Tasso e quatro com seu afilhado Ciro Gomes). Nesse período, mudou a face do estado:
duplicou o seu PIB em dez anos, a taxa de mortalidade infantil hoje é apenas um terço do que
já foi e as redes de água e eletricidade cresceram duas vezes. Mas será isso o suficiente para
elegê-lo?
Fico imaginando o horário eleitoral gratuito
na TV, com o candidato da oposição mostrando
as mazelas de um estado que, apesar dos avan-
ços, tem ainda problemas gigantescos. Está
certo, o PIB duplicou, mas a renda média do
cearense continua sendo a terceira pior do
país; as redes de água e de eletricidade também duplicaram, mas quatro em cada dez domicílios não têm abastecimento de água (é o
terceiro pior desempenho do Brasil) e a rede
de energia elétrica é a quinta menor; a mortalidade infantil caiu, mas ainda é a sexta mais alta do país; o índice de analfabetismo infantil é o
quarto mais alto da federação; o índice de desenvolvimento humano mantém-se abaixo da
média do Nordeste: o Ceará ocupa a 22a
-
posi-
ção. Antevejo as câmaras focalizando as populações miseráveis daquele estado, sem água,
sem luz, com fome, e uma voz em off dizendo:
"Quem governou o Ceará por 16 anos e o deixou assim pode governar o Brasil por quatro?"
Será com certeza manobra política, manipula-
ção de dados que minimiza os avanços para cobrar milagres. Mas com um efeito eleitoral danoso, difícil de ser neutralizado, e que atingiria
também, e pelos mesmos motivos, Ciro Gomes.
Talvez isso explique por que Lula tem dito
que seu maior adversário seria Tasso. Não é
medo; é torcida.
José Serra também é um administrador de
sucesso. Seu desempenho à frente do Ministé-
rio da Saúde é reconhecido até por adversá-
rios. Cientistas de institutos de pesquisas e mé-
dicos de hospitais vinculados à pasta costumam dizer que ele deixará o Governo como o
melhor ministro da Saúde em 50 anos. Serra fechou os ralos que faziam o Estado perder rios
de dinheiro com fraudes, promoveu campanhas nacionais de prevenção contra o câncer
de útero, ampliou em 100% o programa de
agentes comunitários de saúde, instituiu a vacinação de idosos contra a gripe, aumentou em
30% o repasse de verbas aos estados. Além disso, conseguiu fazer o Congresso aprovar projetos que mudaram o perfil da saúde pública no
país, como a lei contra a falsificação de remé-
dios; a que facilita a fabricação de genéricos,
derrubando o preço dos remédios; a que regulamenta os planos de saúde, favorecendo os
consumidores; a que cria a Agência Nacional
de Saúde; e, recentemente, a lei contra a propaganda do fumo e a que possibilita a redução
de impostos sobre medicamentos. É um trabalho cujos méritos são óbvios.
Mas ninguém faz milagres. Apesar dos avan-
ços, será sempre muito fácil flagrar cenas que
mostrem dificuldades terríveis ainda não superadas. Volto a antever o horário eleitoral gratuito e a câmara apontando para pacientes sem
hemodiálise em algum lugar do Nordeste; algum paciente renal há anos à espera de transplante no Sul; pacientes pobres a madrugada
inteira em filas em hospitais do Rio; posto mé-
dico sem remédios em São Paulo; mães chorando pela perda de filhos; pais indignados porque
o filho morreu por falta de atendimento médico. E a voz da oposição dizendo: "E quem não
conseguiu resolver estes problemas vai conseguir governar o Brasil?" Novamente malandragem política, mas com efeitos eleitorais danosos.
Pedro Malan é também um ministro bem-sucedido. Ao fim deste Governo terá estado à
frente do Ministério da Fazenda por oito anos.
Se a situação atual se mantiver, terá indicadores de peso a apresentar: menor
inflação das últimas décadas,
contas públicas em ordem, crescimento. Poderá se apresentar
como um servidor público sem
passagens constrangedoras pela
iniciativa privada, tendo atravessado todo o Governo e o cipoal de
CPIs sem sofrer nenhum arranhão: nem os opositores lhe negam o adjetivo de honesto. E,
mais importante, terá ajudado a
implantar todas as etapas do Plano Real e a superar os obstáculos
que ele enfrentou: a crise do Mé-
xico, em 1995; a crise da Ásia, em 1997; a crise
da Rússia, em 1998; a desvalorização cambial,
em 1999. Um mote para o locutor oficial: "O homem que garantiu o real até aqui, é o homem
que pode garantir a sua continuidade."
Não, não esqueci a voz do locutor da oposi-
ção. "Malan é o homem do Proer, que emprestou bilhões de dólares aos banqueiros." Mas
nesse caso bastará a Malan ser didático. Poderá mostrar que não emprestou dinheiro a banqueiros; tomou deles bancos, sem levar em
conta afinidades e filiações. Acabou com o Nacional, da família das netas do presidente; liquidou o Bamerindus, cujo dono era ninguém menos que o tesoureiro da campanha de FH (e, depois, seu ministro da Agricultura); e pôs fim ao
Econômico, do amigo do poderoso ACM. Poderá mostrar que o que os bilhões do Proer fizeram foi garantir o dinheiro dos depositantes
desses bancos, que puderam sacá-lo sem problemas. Se não houvesse Proer, poderá dizer,
esses depósitos virariam pó, provocando uma
quebradeira de bancos, o que prejudicaria ainda mais brasileiros. E poderá concluir: "Para
mim, isso é política social."
Fernando Henrique foi eleito duas vezes,
com mais de 50% dos votos, em primeiro turno,
graças ao Plano Real. Aos olhos do eleitorado,
é a sua principal obra. Não foi eleito porque é
popular, porque é carismático, porque é amado, porque é populista; foi eleito por ter um discurso racional, de defesa do Real, e por convencer o eleitorado de que era o homem certo
para dar continuidade a ele. A fórmula deu certo em 1994, num momento de euforia, e em
1998, num momento de profunda inquietação.
Por que não daria certo novamente em 2002?
É um silogismo: se o Governo também considera o Plano Real a sua principal obra, se o Plano Real ainda é
estimado (e as pesquisas dizem
que sim), o candidato mais viável
será o que melhor o encarnar.
Para o bem ou para o mal, cada
ato do atual Governo tem um dedo de Malan. A ele, sem parecer
falso, como co-autor, podem ser
atribuídos os méritos que esse
Governo julga ter. E os males também. O desemprego estará em
queda mas ainda alto, a renda do
trabalho estará maior do que hoje, mas menor do que já foi, a proporção de pobres entre os brasileiros ainda será grande e as políticas sociais ainda estarão
aquém do desejável. Situação, no entanto, parecida com a de 98, quando o eleitorado ainda
assim entendeu que os avanços obtidos eram
maiores do que aqueles obstáculos.
Esta é a chave que poderia viabilizar Malan:
o eleitorado pode mais facilmente reconhecer
nele a essência do Governo FH, que estará sendo julgado. E, se a considerar positiva, elegê-lo
p re s i d e n t e .
Um candidato não se inventa; revela-se. Diferentemente do que muitos dizem, Malan não é a
melhor opção do Governo para a hipótese de o
país estar economicamente numa situação maravilhosa em 2002. Nesse caso, o Governo elegeria até um poste. Malan é o candidato mais
viável para uma situação como a que estamos
vivendo: avanços graduais, mas sem milagres.