Ontem, expus as idéias
de Sayyid Qutb, que
radicalizou a herança
do fundador da Irmandade Muçulmana, Hassan
al-Banna, estabelecendo a necessidade de uma Jihad global
para a conversão do mundo ao
Islã. Qutb confirmou a noção de
Al-Banna de que a Jihad não é
apenas defensiva, mas amplioua, deixando para trás a noção de
que o terror islâmico deixaria o
Ocidente em paz se o Ocidente
deixasse em paz o mundo mu-
çulmano. Em seu livro "Sinaliza-
ções na estrada", Qutb diz: "Pode acontecer que os inimigos do
Islã considerem conveniente
não tomar nenhuma medida
contra o Islã, se o Islã os deixar
sozinhos em suas fronteiras
geográficas para que continuem
o domínio de alguns homens sobre outros homens, e se o Islã
não estender a eles a sua declaração de liberdade universal.
Mas o Islã não pode concordar
com isso." E complementa: "De
fato, o Islã tem o direito de tomar a iniciativa. Ele não é uma
herança de nenhuma raça particular ou país. O Islãéareligião
de Deus e é para o mundo inteiro. Ele tem o direito de destruir
todos os obstáculos na forma de
instituições e tradições que limitem a liberdade de escolha dos
homens." Foi o que fez a al-Qaeda ao atacar as Torres Gêmeas e
o Pentágono. Os terroristas tomaram a iniciativa.
A morte de Qutb em 1966, enforcado por Nasser depois de
mais de dez anos na prisão,
transformou-o num mártir. Seus
adeptos foram perseguidos implacavelmente pelos ditadores
árabes laicos da década de 60 e
70. Mas o Ocidente, ignorante
dos reais propósitos dos radicais,
chegou a enxergar neles um antídoto contra o comunismo no
mundo árabe. A Arábia Saudita,
como se estivesse olhando num
espelho, viu neles apenas ultraconservadores, e os incentivou. É
conhecido o apoio que os radicais receberam na luta contra os
soviéticos no Afeganistão. Faltou
leitura. Qutb, já em 1965 em seu
"Sinalizações", recusava ambos
os sistemas: "O mundo ocidental
tem consciência de que a civiliza-
ção ocidental é incapaz de apresentar valores para guiar a Humanidade. (...) O marxismo foi derrotado no plano do pensamento,
não há nenhuma nação do mundo que seja de fato marxista. A
Rússia, que é a líder dos países
comunistas, sofre de desabastecimento de comida." De qualquer
forma, países como o Egito, que
se aproximou dos Estados Unidos depois da morte de Nasser,
relaxaram a guarda contra os remanescentes do grupo, então em
declínio. E arrependeram-se
amargamente. No Egito, os adeptos da Irmandade foram todos
novamente libertados por Anwar
Sadat. Depois do acordo de paz
com Israel, em 1979, a Irmandade
tomou novo fôlego, promoveu
ações contra o governo, que
prendeu dois mil militantes. Para
tentar acalmar os ânimos, Sadat
prometeu estabelecer a Sharia no
país, mas não o fez. Em 1981, fanáticos mataram Sadat, num de
seus feitos mais ousados. Para
justificar o crime, os quatro membros da Jihad Islâmica, um grupo
que nasceu da Irmandade, citaram os estudos de Qutb sobre o
religioso do século XIII Ibn Taymiyya, que pregava a purificação
do Islã. Segundo Qutb, Taymiyya
teria apoiado o sultão do Egito na
guerra contra os muçulmanos
mongóis do Irã, porque, "apesar
de se dizerem muçulmanos, eles
não seguem absolutamente todas as regras da religião e, por isso, podem ser considerados pagãos, contra quem a guerra é legítima."
O assassinato de Sadat teve
repercussões negativas para a
Irmandade Muçulmana em todo
o mundo árabe. Em 1982, o então ditador sírio, Hafez Assad,
sufocou uma revolta liderada
pela Irmandade na cidade de
Hama, matando cerca de dez mil
pessoas. A Irmandade continua
ativa em todos os países árabes,
mas deu origem a muitas dissidências: quase todos os grupos
terroristas vêm dela. Além da
Jihad Islâmica, o Hamas nasceu
da Irmandade — o xeque Ahmed Yassin, recentemente assassinado por Israel, foi membro do grupo durante anos. E a
história da al-Qaeda é indissociável da Irmandade. O primeiro
grande parceiro de Bin Laden foi
Abdullah Azzam, fundador da Irmandade Muçulmana da Palestina, que se desencantara com o
laicismo de Yasser Arafat. Azzam não era um qualquer, mas
uma das mais respeitadas autoridades em Sharia, tendo se graduado no assunto em Damasco,
na Síria e, mais tarde, obtido um
PhD na Al-Azhar, do Cairo. Depois de se desencantar com a
OLP, Azzam foi lecionar na Arábia Saudita, onde deu aulas a
Bin Laden. Tão logo os soviéticos invadiram o Afeganistão, Azzam mudou-se para o Paquistão,
decidido a fazer o que sempre
quisera: dedicar-se de corpo e
alma a uma verdadeira Jihad.
Em pouco tempo, foi para o Afeganistão ajudar a
organizar a guerra dos Mujaahedeem, a partir da
criação da MaK
(Maktabu I-Khidamat, que quer
dizer "escritório
de serviços"),
uma organização
destinada a recrutar guerreiros
em todas as terras muçulmanas,
treiná-los e armá-los.
No mesmo período, Bin Laden, 17o
-
filho de um bilionário
saudita de origem iemenita,
com a idade em torno de 25
anos, partiu também para o Afeganistão, juntou-se a Azzam e
logo tornou-se um dos líderes
da organização, por ser um dos
seus maiores financiadores. Há
muita discussão sobre se o movimento foi financiado pela CIA
e outros serviços secretos ocidentais, mas, ao menos indiretamente, não há dúvidas de que
isso aconteceu. O próprio governo americano admite isso,
mas alega que jamais negociou
diretamente com Bin Laden: o
dinheiro era repassado ao governo do Paquistão, que os repassava aos diversos grupos de
Mujaahedeen do Afeganistão.
Nove anos depois, com a derrota dos soviéticos, Bin Laden
voltou para a Arábia Saudita como herói. A MaK teria treinado e
doutrinado cerca de dez mil homens, que, de volta a seus paí-
ses (Egito, Argélia, Arábia Saudita, Turquia), estavam prontos a
organizar seus próprios grupos
terroristas. Em 89, o parceiro de
Bin Laden, Abdullah Azzam, foi
morto num atentado que provocou a explosão do carro em que
viajava, no Paquistão. Nunca se
soube os motivos reais do atentado, mas diz-se que Azzam discordava do uso dos fundos da
MaK na criação da al-Qaeda. Azzam queria que eles fossem usados integralmente na constru-
ção do Estado islâmico no Afeganistão ou na luta contra Israel.
Nada ficou provado e alguns dizem que insinuar que Bin Laden
tenha alguma coisa a ver com o
atentado é uma calúnia, se é que
se pode usar este termo em relação a Bin Laden.
Azzam, ligado à Irmandade
Muçulmana no passado, não foi,
no entanto, o introdutor de Bin
Laden nos ensinamentos de
Qutb. Já antes de
ter aulas com ele,
Bin Laden bebeu
diretamente na
fonte: Mohamed
Qutb, irmão do
ideólogo do terror Sayyid Qutb,
mudara-se para a
Arábia Saudita na
década de 50, quando os adeptos da Irmandade foram perseguidos por Nasser. Lá, foi aceito
como professor e deu aulas a
Bin Laden na década de 70, antes mesmo que ele ingressasse
na universidade. Não há dúvidas, porém, de que Bin Laden se
inspira nos ensinamentos de
Qutb, embora, hoje, haja muitos
outros autores (entre eles o pró-
prio Azzam, que publicou muitos livros), que desenvolveram,
aperfeiçoaram ou até mesmo
criticaram as teorias de Qutb. É
curioso ver hoje como o establishment religioso da Arábia
Saudita tenta se distanciar de
Bin Laden, com argumentos que
chegam a ser engraçados. Engraçados, mas não ingênuos ou
pobres intelectualmente. Porque todos eles são grandes estudiosos. No site "salafipublications.com", há muitos artigos de
eruditos, tentando entender o
que se passou no reino saudita
que pudesse ter dado origem a
desvios como o de Bin Laden. A
conclusão é de que o reino deixou-se enganar ou foi enganado
pelos membros da Irmandade
que lá foram acolhidos quando
perseguidos por Nasser. Acreditando que eram salafis "puros"
(aqueles que acreditam que vivem o Islã como no tempo do
Profeta, sem inovações), os sauditas, que se consideram salafis,
lhes deram plena liberdade para
trabalhar em escolas e universidades durante décadas. Somente mais tarde, quando o movimento terrorista de Bin Laden
eclodiu, no início dos anos 90, é
que teriam descoberto que eles
traíram o reino ao lecionar livremente os ensinamentos de AlBanna e Qutb. Os eruditos sauditas dizem que tarde demais se
deram conta de que os dois não
eram verdadeiros salafis, mas o
seu contrário: inovadores da religião! A principal inovação, evidentemente, era pregar a derrubada de governos, especialmente do governo saudita. "Todo
salafi sabe que
não se prega a
derrubada de um
governante justo,
quando ele erra.
Um salafi aponta
os erros para que
o governante
possa mudar", diz um dos textos do site. Os sauditas seguem
os ensinamentos de um salafi do
século XVIII chamado alWahhab, mas se ofendem quando chamados de wahhabistas
(porque isso dá a entender que
eles cultuam outro que não o
Deus único). Mas eles próprios
tentam ofender Bin Laden chamando-o de qutbista! Na verdade, trata-se de uma guerra para
ver quem é o Islã mais puro. Porque Bin Laden também renega o
wahhabismo, e, portanto, o credo em vigor na Arábia Saudita,
acusando-o de Shirk (adorar outro deus ou associar outro a
Deus): "Eles deixaram Deus de
lado para se submeter a outro
senhor", diz Bin Laden, referindo-se à doutrina de al-Wahhab.
A Arábia Saudita tem mesmo
muito do que se lamentar, porque criou um monstro. Assim
que o Iraque invadiu o Kuwait, e
a Arábia Saudita aceitou a ajuda
americana para expulsá-lo de lá,
evitando, assim, a invasão de
seu próprio território, houve
muita discussão. Bin Laden e
muitos no reino não se conformavam com a ajuda de Kuffars
(não-muçulmanos) no que eles
consideravam uma Jihad. Se
eles tinham obtido êxito, sozinhos, no Afeganistão contra o
império soviético, porque não
seriam capazes de enfrentar
Saddam Hussein? Os eruditos
muçulmanos do reino foram
obrigados a divulgar estudos
provando por "a" mais "b" que a
tradição permitia tal tipo de ajuda, contanto que fosse temporá-
ria. Mas Bin Laden nunca aceitou tais estudos e passou a desafiar a família real, acusando-a
de não praticar o Islã puro, salafi. Com a retórica de que tropas americanas estavam maculando as terras santas do Islã,
Bin Laden anunciou uma luta
contra a família real e acabou expulso do país. Seguiu primeiro
para o Afeganistão, onde passou
um ano, depois
mudou-se para o
Sudão, onde morou por quatro
anos, totalmente
livre para continuar seus negó-
cios (banco,
construtora, empresa de exporta-
ção e importação). Por pressão
americana, acabou expulso novamente e voltou para o Afeganistão, onde deve estar até hoje.
Em 98, ele divulgou um manifesto, dizendo: "Matar americanos
e seus aliados, civis e militares, é
uma obrigação individual de todo muçulmano."
E ele se mostrou capaz de tudo. Aqui no Brasil, quando queremos dizer que alguém não é
de fato maluco, afirmamos: "Ele
é louco, mas não rasga dinheiro". Bin Laden rasga: sua imensa
fortuna, calculada em US$ 300
milhões, vem sendo dilapidada
desde que se lançou em sua
Jihad contra o Ocidente. Hoje, a
al-Qaeda conta com uma rede de
centenas de grupos terroristas,
espalhados no Oriente Médio,
na Ásia, na Europa. Em novembro de 2001, um repórter paquistanês disse que Bin Laden lhe
havia garantido que a al-Qaeda
tinha "capacidade nuclear". Esse
mesmo repórter, há poucas semanas, aproveitando-se da
amnésia coletiva, repetiu a mesma história com grande sucesso
(o repórter concedeu uma entrevista a uma TV australiana e a
notícia voltou a varrer o mundo). Poucos lhe dão crédito.
Mas leiam isso. Existe um instituto em Israel dedicado a pensar o terrorismo. Chama-se The
International Policy Institute for
Counter-Terrorism (ICT), criado
em 1996, em Herzliya. Um dos
seus pesquisadores mais conceituados chama-se Yoram
Schweitzer. Durante a Conferência Internacional sobre Terrorismo Suicida, realizada na sede do
ICT em 21 de abril de 2000,
Schweitzer dissertou sobre o tema "Terrorismo suicida, desenvolvimento e características".
Depois de todos os dados histó-
ricos, do relato das ações mais
recentes contra Israel, ele disse
que o número médio de vítimas
era de nove a 13 por atentado. E,
bem ao final, declarou: "O terrorismo suicida pode representar
no futuro um grande potencial
de risco se os terroristas fizerem
operações combinadas com
ações espetaculares, tais como
explodir aviões ou usar armas
de destruição em massa. Esta
combinação vai aumentar imensamente o número de mortos de
um simples ataque terrorista e
vai ter um efeito psicológico terrível sobre o moral do público.
Nesse nível, o terrorismo suicida se constituirá numa genuína
e estratégica ameaça e será, provavelmente, enfrentada como
tal." Schweitzer disse isso um
ano e cinco meses antes do 11
de Setembro, quando, vale lembrar, 19 suicidas usaram quatro
aviões para matar cerca de três
mil pessoas. Como ele previu, a
reação, à altura, desencadeou
uma guerra, que estamos vivendo até hoje.
O mesmo pesquisador, quando confrontado em 2001 com a
afirmação de Bin Laden de que
já tinha capacidade nuclear, escreveu um artigo para desmentila ("Osama e a bomba").
Schweitzer disse que muitos ditadores investiram anos e milhões de dólares tentando, sem
sucesso, desenvolver ou comprar armamentos nucleares.
Não seria, portanto, assim tão
fácil para Bin Laden, isolado nas
montanhas afegãs, conseguir
realizar seus desejos nucleares.
Mas, também ao final do artigo,
como fez em 2000, Schweitzer
advertiu: "No entanto, é preciso
ter uma atenção meticulosa para a habilidade criativa de Bin
Laden. Ele não investiu seu dinheiro em aviões, equipamentos
ofensivos ou explosivos para
realizar o 11 de Setembro. Em
vez disso, ele simplesmente
usou as ferramentas de seus
oponentes contra eles próprios.
Tomando o controle de quatro
aviões, usando recursos mínimos, ele teve sucesso, sendo o
autor do pior ataque terrorista
da história da Humanidade. A li-
ção deve ser clara para os encarregados da segurança mundo
afora. Rigorosas medidas devem
ser tomadas para inspecionar
instalações e materiais não-convencionais. Nós não devemos
ser pegos de surpresa novamente, se Osama bin Laden tentar tirar vantagens de nossa complacência ou negligência para virar
nossas próprias armas contra
nós." Ou seja, o pesquisador esclarece que Bin Laden já tem capacidade nuclear: as nossas.
Eles são muitos, têm uma
idéia clara sobre o que querem
fazer, são resolutos, cultivam a
certeza e já demonstraram que
sabem como agir. Além de tudo,
"sentem" que têm Deus ao seu
lado e, por isso, amam a morte
(e mais de 300 deles já demonstraram isso nos últimos vinte
anos). Para mim, isso seria o
bastante para que o Ocidente se
unisse. Por três vezes no século
passado, o mundo que pensa, o
mundo que duvida, o mundo
que respeita as diferenças, o
mundo que ama a liberdade se
uniu para derrotar o inimigo comum: os totalitarismos. Dessa
vez, o nosso mundo ainda caminha dividido talvez porque nem
todos tenham ainda percebido
que o outro mundo é o totalitarismo do século XXI.