'Central do Brasil': nem realista nem alegórico, apenas falso | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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'Central do Brasil': nem realista nem alegórico, apenas falso

Cavalcante

"Central do Brasil": nem realista nem alegórico, apenas falso

Nos anos da ditadura, era comum ouvir militares acusando nossos cineastas de mancharem a imagem do país no exterior. Tratava-se, naturalmente, de rematada tolice. O que aqueles cineastas faziam — e aqui não menciono nenhum para não pecar por omissão — era expor o Brasil, em suas diversas facetas, ora valendo-se de um realismo cru, ora recorrendo a uma narrativa alegórica. O que se pretendia era discutir as mazelas brasileiras, os nossos vícios, a nossa misé- ria, os nossos descaminhos.

Hoje, como na ditadura, infelizmente as nossas mazelas não são poucas — há para todos os gostos e desgostos. Enumerá-las seria um malvado exercício de entediar o leitor. Retratá-las, discuti-las, mostrá-las teria sido o objetivo de Walter Salles, com o seu "Central do Brasil", o que o poria, de uma maneira ou de outra, dentro daquela tradição do cinema brasileiro. A intensa relação humana que se vai construindo entre a esperta Dora e o solitário Josué, a crescente troca de afeto, a mudança na vida dos dois seriam a moldura, inteligente, criativa, em que a tal da realidade brasileira estaria contida. Uma análise mais detida mostra que isso, no entanto, é mais uma rematada tolice.

No filme de Walter Salles não está nem um Brasil real nem tampouco um alegó- rico. Está simplesmente um Brasil falso. Não se trata de realismo, neo-realismo, realismo mágico, nada. Trata-se, no má- ximo, de uma realidade virtual, que se pretende passar por concreta, mas que não tem existência empírica alguma. O trágico é que as platéias internacionais compram gato por lebre e ficam embevecidas com o gato. E o Brasil-real?Ah, o Brasil-real que se dane.

Há três pontos-chave do roteiro, fundamentais para o desenvolvimento da trama, que levam o filme para o campo da irrealidade. O primeiro deles: uma mãe nordestina, decentemente vestida, cria decentemente o seu filho de nove anos, supostamente em algum dos decentes subúrbios da Central, apesar da ausência do marido. Essa senhora morre atropelada diante do filho, que se joga sobre o corpo dela, aos prantos, gritando "mãe, mãe, mãe". Para qualquer um que conheça a Avenida Presidente Vargas, o que se seguiria a uma cena dessas é conhecido: o rabecão chegaria, a senhora decente seria levada para o IML, e, não sendo identificada, seria enterrada, depois de 15 dias, como indigente. E ao filho, o que aconteceria? Talvez Walter Salles não saiba, porque lá nunca esteve, mas a poucos passos da Central está a sede do Juizado de Menores de uma das principais cidades do Brasil. Eu não tenho nenhuma dificuldade de imaginar um PM digno (porque os há) pegando o garoto pelo braço, atravessando a rua, e o entregando ao juizado. O filme de Walter Salles acabaria ali, está certo, mas poderia começar outro, este verdadeiro e realista: o drama de um menino órfão jogado numa instituição para menores. Walter Salles preferiu pegar, no entanto, um atalho.

O segundo momento: um rapaz rouba uma bugiganga de algum camelô da Central. Atrás dele, saem correndo membros do que seria um grupo de "segurança" particular. O rapaz é pego e fuzilado à queima-roupa, como se o fato fosse rotineiro: na Central, quem rouba morre. Talvez Walter Salles não saiba, mas o Centro do Rio é cercado por sedes de jornais, entre as quais a do GLOBO. Não se nega aqui a possibilidade de algum assassinato isolado num lugar como uma esta- ção de trem. Mas, certamente, se houvesse uma rotina, se houvesse um esquadrão que rotineiramente matasse a sangue-frio ladrões de galinha na mais importante estação de trem da cidade, o assunto estaria estampado nas manchetes de nossos jornais. Aqui se tem uma imprensa vigorosa. Há chacinas de menores abandonados, de moradores de favelas? Certamente sim, mas todas viram comoção nacional, viram escândalo, ganham as manchetes de nossos jornais por meses e até anos. A Chacina da Candelária e a de Vigário Geral estão aí como prova. Não há, no Rio de Janeiro, possibilidade de um esquadrão da morte agir em plena Central do Brasil sem que seja denunciado pela imprensa livre de nosso país. Já no país imaginado por Walter Salles, tudo é possível.

Até mesmo o tráfico de órgãos retirados de crianças seqüestradas ou compradas a preço vil — e aí vem a terceira grande falsidade do filme. O tráfico de órgãos de crianças é mais uma dessas paranóias sociais que jamais são comprovadas. Fazem parte do imaginário de uma certa camada da população. Volta e meia aparece como boato forte, quase como verdade (o último deles dava conta de que a quadrilha agia num grande shopping da cidade). E, apesar do esforço de investiga- ção de toda a imprensa brasileira, nada foi provado, nada, nenhuma pista, nenhum corpo, nenhuma mutilação. No país de Walter Salles, no entanto, lá está a coisa como verdadeira. Lá está o trá- fico de órgãos de crianças vivas como elemento desencadeador de toda a parte substancial da trama (a viagem de Josué com Dora em busca do pai). Os anos se passaram e os tolos trocaram de papel: tolice hoje é dizer que "Central do Brasil" seja um retrato do nosso país. Temos mazelas demais, repito, mazelas terríveis que nos transformam num país por construir, num país em que a cidadania está longe de ter sido alcançada por parcelas majoritárias de nossa população. Mas Walter preferiu ignorar as nossas mazelas verdadeiras, decidiu inventar outras, que não temos. Com isso, seu filme peca eticamente, perde o sentido, passa a ser de uma superficialidade ímpar, um filme para inglês ver. Um filme que desonra a tradição em que se quer inserido.

Sensibilizar platéias aqui e lá fora com nossa realidade, com nossa verdade, mostrando nossos desacertos, nossos desvios, nossas perversões, é um exercí- cio de soberania, eticamente irretocável. Tentar fazê-lo falseando a realidade, e tão desnecessariamente, porém, é indesculpável. O resultado, digo sem medo de ser patrulhado, é que, desta vez sim, estamos sujando a imagem do Brasil lá fora. Não por supostamente mostrá-lo como ele é, mas por mentirmos sobre nós mesmos. Um estrangeiro que tenha visto o filme sairá do cinema com a seguinte impressão do Brasil: é um país onde crianças com endereço certo (Josué conhecia até o endereço do pai, quanto mais o seu!) viram indigentes se a mãe morrer atropelada na avenida mais movimentada do Rio de Janeiro, em frente à sede do Juizado de Menores, e ficam à mercê de um esquadrão da morte agindo livremente na maior estação de trens da segunda maior cidade do país, correndo o risco de ter os rins, as córneas e o fígado arrancados por uma quadrilha de traficantes de órgãos. Este não é o Brasil que conheço. Esse é o Brasil que milhares de estrangeiros no mundo estão, porém, conhecendo. Cinematograficamente, o filme não traz novidades: é linear, previsível e nada inovador (ao contrário, abusa de clichês, como a câmera rodopiante na cena em que Dora gira antes de cair desmaiada). O elenco? Claro, Fernanda Montenegro está magistral, como costuma estar em tudo o que faz. É uma atriz para todos os prêmios.

A torcida para que "Central do Brasil" ganhe o Oscar é grande, sabemos todos. Devemos, porém, também saber que, se o ganharmos, não terá sido nem com um filme realista, nem com uma alegoria do Brasil. Teremos vencido com uma mentira. A um custo para o país que ninguém é capaz de medir.