Neste dia decisivo para as
eleições americanas, o que
me importa é mostrar o
que a candidatura de Barack Obama já representou para os
EUA e para o mundo: um passo
adiante no processo civilizatório, um
tijolo na construção de uma humanidade em que cor e raça não represente nada.
Não digo isso à toa, mas apenas depois de ler os dois livros de Obama,
"Dreams from my father" ("Sonhos vindos do meu pai") e "The Audacity of
Hope" ("A audácia da esperança"). Um
resumo da biografia do candidato ajuda a entender por que penso assim.
O pai de Obama, Barack como ele,
foi um menino inteligente, filho de um
convertido ao Islã, criado com a famí-
lia (o pai com três esposas e muitos
irmãos) numa aldeia remota do Quê-
nia. O menino tirava as melhores notas na escola, mas, adolescente, acabou expulso por faltas. Foi para Nairóbi trabalhar como office boy, num
emprego arranjado pelo pai, mas logo
abandonou o posto por um que pagava menos: desentendera-se com o patrão. No segundo emprego, começou
a perceber, já com 19 anos, que seus
antigos colegas de escola, a quem costumava dar cola no passado, estavam
em melhores condições, muitos freqüentando a universidade. Ele se desesperou, quis recuperar o tempo e,
para isso, contou com a ajuda de duas
professoras americanas com quem
travou contato: elas perceberam nele
um rapaz talentoso e capaz. Conseguiu concluir o ensino médio por correspondência e, com a ajuda das americanas, escreveu para todas as universidades nos EUA em busca de uma
bolsa de estudo. Foi aceito pela Universidade do Havaí, para onde se
transferiu imediatamente. Ao embarcar para os EUA, aos 20 anos, casado
desde os 18, deixou um filho, Roy, e a
mulher grávida de sua filha Auma.
Na universidade, o queniano conheceu Ann, uma americana do Kansas, o protótipo da menina branca do
tradicional meio oeste americano.
Apaixonaram-se, casaram-se, sem a
oposição dos pais de Ann (embora
não haja fotos de festas, bolos, nada,
suspeita-se de que tudo tenha sido
feito na maior discrição). Obama nasceu logo. Dois anos depois, o pai de
Obama recebeu dois convites para
fazer doutorado. Uma universidade
do segundo time pagava tudo, inclusive o sustento da mulher e do filho.
A segunda, Harvard, bancava apenas
as despesas com a anuidade. O pai
preferiu ir para Harvard, deixando
para trás Ann e Obama. Depois de
conseguir o seu PhD, voltou, sozinho, para o Quênia, onde se casou
novamente, a terceira vez, com outra
americana, Ruth, com quem teve
dois outros filhos, Mark e David, este
já falecido. Só voltaria a ver Obama, o
filho americano, quando o garoto tinha dez anos. Assim mesmo, por menos de um mês. E nunca mais.
Obama foi criado pelos avós americanos e pela mãe. Quando tinha seis
anos, foi viver em Jacarta ao lado da
mãe: ela se apaixonara no Havaí por
Lolo, um muçulmano indonésio, que a
pediu em casamento e propôs que todos fossem viver imediatamente em
seu país natal. Obama morou ali dos
seis aos dez anos: estudou dois anos
numa escola católica e dois, numa mu-
çulmana. Ann nunca quis que o filho
deixasse de ser americano, porém, e,
sem ter dinheiro para matriculá-lo numa escola internacional, pôs também
Obama para fazer um curso por correspondência para que, assim, ele
também obtivesse um diploma americano. Além disso, reforçou o ensino
de inglês, dando aulas ao garoto das
quatro às sete da manhã, hora em que
ele partia para a escola de Jakarta. Um
ano antes de se divorciar de Lolo, Ann
mandou o filho de volta ao Havaí, aos
cuidados dos avós americanos.
Obama estudou numa escola de
elite no Havaí, fez a faculdade, parte
na Occidental College, em Los Angeles, e parte em Columbia, em Nova
York. Já em Chicago, trabalhando numa ONG com foco em comunidades
carentes, entrou para Harvard onde
se doutorou em Direito. Aos 21 anos,
em 1982, soube da morte do pai, num
desastre de automóvel. Não foi ao enterro. Só encontrou-se com dois de
seus irmãos quenianos quando estava em Chicago. Visitou o Quênia pela
primeira vez em 87, quando tinha 26
anos, ocasião em que conheceu toda
a família (a mulher que a imprensa
apresenta como sua avó, na verdade
é a avó postiça, a que criou o seu pai,
já que a avó verdadeira deixou a família quando abandonou o marido).
Roy, seu irmão queniano, mudou-se
por conta própria muitos anos atrás
para os EUA, e converteu-se ao Islamismo. Obama tornou-se um fiel da
Igreja de Cristo Trindade Unida, que
freqüenta com fervor até hoje.
Por que conto toda essa história?
Porque assim o leitor terá dimensão de quem é Obama. Ele não pode
ser visto como um candidato negro,
porque foi criado e amado e educado
por uma família branca do meio oeste americano. Não pode ser visto como um candidato branco, porque sofreu na carne todo o preconceito que
os negros sofrem nos EUA (e, por isso, aderiu ao movimento negro na juventude). Não se pode dizer que é
um negro que tolera os brancos, porque é parte dos brancos. Não se pode
dizer que é um branco que entende
os negros, porque a sua cor diz tudo.
Não se pode também dizer que é um
cristão que respeita os muçulmanos,
porque, muito mais do que isso, ele
viveu num mundo muçulmano de tolerância, o que, para um candidato
viável, é uma experiência talvez única naquele país.
Por tudo isso, soa verdadeiro quando ele disse que "não existe uma Amé-
rica branca, uma América negra, uma
América asiática ou uma América hispânica; o que existe são os Estados
Unidos da América". Quem não conhece a sua biografia pode achar que
isso é fruto de um speech writer inspirado. Não é. Isso se chama vivência.
Em 1984, o então pré-candidato
Jesse Jackson, negro, tinha como slogan: "Nossa hora chegou. As mãos
que antes colheram algodão, agora
vão colher um presidente." Nada
mais diferente do que o slogan de
Obama: "Somos um só povo, e nossa
hora para mudar chegou."
No Brasil, ainda temos a chance de
manter o mesmo sonho.