Síria e Iraque foram inimigos
durante anos, muitos anos. Em
meados da década de 50, um
partido socialista leigo chegou
ao poder na Síria. Era o Baath,
que em árabe significa "renascimento" e que tinha a proposta de unir todos os árabes numa só nação. Um comitê central pan-arabista chefiava as se-
ções nacionais do partido na
Síria, no Iraque, na Jordânia e
no Líbano. Em 1958, no auge da
pregação pan-arabista de Gamal Abdel Nasser, no Egito, a Sí-
ria, sob a liderança do Baath,
abriu mão de sua soberania e
aceitou formar com os egípcios
a República Árabe Unida
(RAU). Três anos depois, a realidade substituiu os sonhos, e
os sírios começaram a notar
que ocupavam um lugar de segunda classe, como subordinados, simples membros da província norte da recém fundada
RAU. O resultado foi um novo
golpe de Estado na Síria, que
devolveu ao país a sua independência.
Em 1963, porém, o Baath sí-
rio voltou ao poder e, no mesmo ano, o seu congênere do
Iraque assumiu o governo
através de um golpe de Estado. Em pouco tempo, os dois
partidos começaram a fazer
gestões para que uma nova
República Árabe Unida fosse
criada, dessa vez uma união
entre Síria, Iraque e Egito. Mas
Nasser quis impor as suas pró-
prias condições e a união não
foi para frente. E, logo, as rela-
ções entre Síria e Iraque estariam também estremecidas.
Porque a existência de um comitê central pan-arabista do
Baath, supranacional, criava
uma incômoda situação: nãosírios intrometendo-se nos assuntos sírios e não-iraquianos
fazendo o mesmo em relação
ao Iraque. A solução seria a
raiz dos desentendimentos futuros. A Síria decidiu criar seu
próprio comitê central supranacional em oposição ao que
antes já existia. E Síria e Iraque
passaram a disputar quem tinha mais legitimidade para
unir os árabes do mundo inteiro. Os árabes continuaram desunidos, e Iraque e Síria se tornaram cada vez mais rivais.
Saddam Hussein, mesmo antes de ser o presidente, sempre
se opôs à união com a Síria, e
mandou para a morte muitos
iraquianos acusados de serem
agentes sírios. Em 1970, Hafez
Assad deu um golpe dentro do
próprio Baath e conseguiu unir
o país em torno de si. Os dois
países seguiram caminhos
opostos. Em 1980, a Síria
apoiou o Irã contra o Iraque, na
guerra de oito anos que se seguiria. E, em 1991, a Síria fez
parte da coalizão (com homens e armas) que expulsou o
Iraque do Kuwait. Em 1980, os
dois países romperam relações
e fecharam as fronteiras.
Em 1997, após quase 20
anos de hostilidades, as fronteiras entre os dois países foram parcialmente reabertas,
mas somente depois da morte de Hafez Assad as relações
entre os dois países se tornaram amistosas. Hafez foi
substituído por seu filho
Bashar, então um jovem oftalmologista de 32 anos (o verdadeiro herdeiro, o filho mais
velho de Hafez, morreu num
desastre de automóvel). Foi
Bashar que acelerou, a partir
do ano 2000, os entendimentos com o governo de Saddam. A necessidade de visto
diplomático foi suspensa, o
Iraque abriu uma representa-
ção diplomática em Damasco
e alguns acordos relativos a
transporte, comércio e comunicação foram assinados, embora não implementados.
À medida que a reaproximação era anunciada, os analistas tentavam entender a estratégia da Síria. Uns acreditavam que Bashar achava
provável que as sanções contra o Iraque seriam levantadas em breve; nesse contexto, a reaproximação seria
uma tentativa de assegurar
no futuro um lugar privilegiado no comércio com um país
potencialmente rico. Outros
acreditavam que o objetivo
era militar. A Síria tem disputas territoriais com a Turquia
desde que a França, na década de 30, cedeu parte do seu
território para aquele país.
Nos últimos anos, a situação
tem estado tensa, porque a
Turquia, onde nasce o Eufrates, ameaça com a constru-
ção de novas represas, o que
deixaria tanto Iraque quanto
Síria ainda mais vulneráveis
do que já são em termos de
abastecimento de água. Para
complicar a situação, a Turquia estreitou laços com Israel nos anos 90. Para fazer
frente a Israel, com quem ainda está em "estado de guerra", e a Turquia, Bashar teria
visto na força militar do Iraque uma possível ajuda. A ser
verdadeira essa hipótese, e
diante do fiasco da máquina
de guerra iraquiana, a reaproximação teria sido um tremendo erro de cálculo.
Considerando que os EUA
há anos acusam a Síria de ter
armas químicas e de proteger
os terroristas dos grupos Hamas, Jihad Islâmica e Hezbollah, o reatamento com o Iraque foi uma manobra de altíssimo risco. Num relatório semestral que a CIA faz ao Congresso americano sobre a
aquisição de tecnologias relacionadas a armas de destrui-
ção em massa, está dito: "A
Síria buscou no exterior expertise em armas químicas,
mantém estoque de gás sarin
e parece estar tentando desenvolver formas ainda mais
letais de atingir o sistema
nervoso. É altamente prová-
vel que a Síria esteja desenvolvendo capacidade para fabricar armas biológicas altamente destrutivas". O relató-
rio é de junho de 2001.
Ano passado, a Síria deu o
seu voto a favor dos EUA no
Conselho de Segurança da
ONU, ajudando assim a aprovar por unanimidade a Resolução 1441, que obrigava o
Iraque a se desarmar, "sob
pena de enfrentar graves
conseqüências". Parecia que
a Síria tinha percebido para
que lado pendia a balança.
Mas a julgar pela posição enfaticamente pró-Iraque imediatamente antes e durante a
guerra, a Síria mostrou ao
mundo que, depois de tantos
anos de hostilidade, a reaproximação com o Iraque foi
a coisa errada, na hora errada, no lugar errado. E, pelo
que se viu no Iraque, já se sabe quem se arrisca a pagar a
conta: o povo.
Amanhã, semelhanças e diferenças entre Iraque e Síria.