Editoria de Arte
Recém-chegado a Brasília,
como diretor de sueursal,
eu tinha de fazer o
tradicional périplo de
apresentação a autoridades, ministros,
deputados e senadores,
logo no primeiro dia, fui almoçar
com o deputado Francisco
Dornelles; a certa altura ele revelou
que tinha almoçado, dois
dias antes, com o cardeal-arcebispo
do Rio de Janeiro, Dom
Eugênio Sales. Com aquele jeito
mineiro de falar baixinho, Dornelles
resumiu as preocupações
do cardeal;
Dom Eugênio está apavorado
com os rumores sobre a compra
da TV Manchete e da Vasp.
Ele ouviu falar que tudo faz par*
te de um grande esquemão, envolvendo
o Collor e o PC.
Voltando para a redação, brinquei
com um amigo:
Já temos manchete: "Cardeal
denuncia esquemão Collor-
PC".
Estávamos em maio de 1991, e
a manchete, se possível, teria sido
a primeira da série que ajudou
a tirar Collor do poder. Naturalmente
não foi publicada,
pois nada daquilo era material
jornalístico, mas tema de conversa
de bastidores, sem provas.
E, até que Pedro Collor decidisse
abrir o bico, muitos meses seriam
ainda necessários.
Lembrei-me desse episódio ou- dia, quando soube que o julgamento
de Collor no STF estava
marcado para quarta-feira,
dia 7. Foi quando me fiz pela
enésima vez a pergunta: por que
tudo acabou daquele jeito? As
razões são muitas, e entre elas
está o caráter do ex-presidente.
Não podia ser diferente. Cercando-
se de quem se cercou, Collor
não tinha chance alguma de terminar
bem o mandato. Sabia-se
de tudo; faltavam as provas.
De longe, aquela turma parecia
apenas um bando de mal-educados,
gordos e mal-acabados.
De perto, piorava: eram simplórios,
ignorantes, atropelavam o
idioma, bebiam mais do que a
prudência recomenda, vestiamse
com grifes caras que, juntas,
não combinavam, eram inconvenientes, indiscretos, arrogantes
e a alguns faltavam dentes. Não
exagero: se postos lado a lado, os
colaboradores mais próximos de
Collor (os componentes da então
chamada "República de Alagoas")
lembravam personagens
cômicos de desenho animado.
Mas eram de carne e osso. Mais
carne, é verdade: todos ameaçavam
com a barriga fazer saltarem
os botões das calças e das
camisas. A crônica de Brasília
daquela época só foi contada em
parte. Sabe-se da roubalheira,
dos escândalos, da corrupção.
Mas o que essa gente dizia e fazia
e como ela se comportava...
muito se silenciou até hoje. O
que passo a contar, por exemplo,
é a mais pura verdade.
O must daquele reinado era a
feijoada que o deputado Cleto
Falcão, então dos mais íntimos
amigos de Collor, oferecia ã corte
nos fins de semana. Quem
quisesse ou precisasse se enturmar
tinha de degustá-la ao menos
uma vez. Dr. Ulysses, coitado,
em época de maré baixa, por
pouco não mancha a biografia
comparecendo a uma delas: no
dia combinado, por uma espécie
discutível de sorte, a irmã dele
morreu em São Paulo e ele teve
de desmarcar em cima da hora.
Ainda bem que fui poupado dessa
mesma sorte, mas em compensação
fui ao feijão, por dever
profissional de conquistar fontes.
A recepção foi do tipo "vou fingir-
que-sou-seu-amigo-da-vidainteira-
e-vocé-vai-fingir-que-estábem-
à-vontade". Funcionou às
avessas: tímido, sentia-me acuado
e não via a hora de tudo terminar.
Mas sabia que o suplício
duraria bastante - a feijoada só
seria servida quando Collor chegasse,
Detalhe: sempre convidado,
o presidente jamais confirmava
presença, mas todos sablam
que, se aparecesse, não
chegaria antes das seis. Para al*
moçar, claro. O resultado era
um bando de convidados famintos,
pois chegava-se à uma da
tarde e o único quitute servido
era bacon frito, apresentado a
todos como torresmo. A bebida,
porém, era farta, e o pileque
abrangia todos os convidados
que ali não estavam a trabalho.
Apesar da fome, o ambiente era
o mais forçosamente festivo.
Já no gramado da casa (uma
eoiKstrução a beira do Lago Paranoá), lancei para o anfitrião um
desses elogios a que se recore
para quebrar o gelo:
- Que linda vista! Com o sol,
o lago fica ainda mais bonito.
- Pois não é? — respondeu
Cleto no mais puro sotaque alagoano.
— Eu sempre disse que o
dono antigo era burro, muito
burro — completou.
- Burro pôr quê?
- O dono era ecológico, não
sabe? E em vez da vista, preferia
as 60 árvores que tinha aqui —
respondeu Cleto.
Nem foi preciso perguntar onde
as árvores tinham ido parar.
Cleto é do tipo que fala sem parar,
sempre orgulhoso do que
diz.
- Eu não tive dúvidas. Entrei
aqui às oito da manhã com uma
serra elétrica e uns dez cabras.
Só terminamos o serviço às duas
da manhã. Mas valeu a pena.
Não é lindo esse gramado verdinho,
verdinho?
Ao lado, a mulher de Cleto,
uma mocinha loura, aparentando
menos do que 25 anos, emendou:
- E o ecológico preferia o tal
do bosque. Êta homem burro!
O que se diz numa ocasião
dessas? Infelizmente, minha surpresa
foi maior do que minha
prudência e perguntei estupefato:
- Sessenta árvores derrubadas
de uma vez?
Fui salvo pelo orgulho de Cieto,
que se sentiu elogiado:
- Numa tacada só! Ah, comigo
é assim. Você ainda não me
conhece, mas vai logo perceber.
Sou homem de decisões. Não ficou
lindo? Só estou incomodado
um pouco com aqueles galhos ali
(referia-se a uma árvore frondosa),
mas o tronco está no vizinho,
e ele também é ecológico e
não quer deixar eu limpar o terreno
de jeito nenhum. Mas deixa
comigo. Eu ainda o convenço.
Naquele instante, chegava um
convidado especial. Visão assustadora.
Um homem alto, começando
a ficar careca, gordo, barriga
imensa, tudo realçado pelos
trajes: minúsculo short alaranjado-
crepúsculo, camiseta de malha
grudada ao corpo, tênis e,
presa ao cinto flutuante, uma
bolsinha, espremida entre a barriga
e a coxa.
Com aquela vestimenta, seria
no mínimo o concunhado do dono
da casa ou quase, e era. Mas,
além de namorar a irmã da mulher
de Cleto, o homem era o ministro
da Infra-estrutura, o comandante
de um superministério
que reunia, num só, os atuais
ministérios dos Transportes, das
Comunicações e de Minas e
Energia, Pensei que João Santana
ficaria irritado ao descobrir
que a feijoada íntima para a
qual fora convidado era na verdade
festa com muitos intrusos.
Mas nada: pelo que disse e fez,
ele deu mostras de que se sentia
comme il faut e se achava belíssimo,
como descobri momentos
depois.
- Jovem, 34 anos, solteiro,
rosto bonitinho, ministro poderoso,
já sabia mesmo que eu ia
enfrentar certos problemas --
disse Santana, exibindo o próprio
rosto aos interlocutores, ao
responder a algumas perguntas
sobre críticas que vinham sendo
public.adas na imprensa.
- E tudo inveja concluiu,
puxando para o seu colo a namorada,
uma moça de uns 20 anos, em quem deu um longo e demorado
beijo.
Falava com sinceridade. Pelo
menos em mais duas vezes naquele
dia, e numa terceira durante
um almoço, Santana repetiría
a frase, sempre espalmando
a mão em cada lado do rosto, como
a exibi-lo. Tempos depois se
disse que Santana ficara com
uma espécie de trauma desde a
demissão da ministra Zélia. Na
noite em que ela deixou a pasta
da Economia, Santana, achandose
também fora do Governo (ele
era secretário de Administração),
passara todo o tempo xingando
Collor e solidarizando-se
com Zélia. Na manhã seguinte,
convidado para o Ministério da
Infra-estrutura, aceitou na hora,
mudando sem hesitar de lado.
Daí porque logo após a posse no
cargo, dedicava-se a sessões de
elogios a si próprio, para fugir
da acusação de traidor.
Na feyoada de Cleto, a sessão
de auto-elogios foi longa: Santana
se gabava de ter lutado contra
a ditadura em organizações
de esquerda, de ter trabalhado
pela anistia, e ajudado o Governo
Montoro, e participado da
elaboração do programa de Tancredo
etc etc. Foi, graças a Deus,
interrompido por Cleto, que lhe
ofereceu outra dose de uísque,
Santana aceitou e elogiou a qualidade.
E a melhor possível disse
Cleto, arrastando Santana e outros
convidados para mostrar a
sala onde guardava as caixas da
bebida.
Comprei tudo por tantos dolares,
é do bom e do melhor, tem
tudo isso at e muito mate atrás
daquele movei ali dissee Cleto.
- Só falta o Tuma (então secretário
da Receita Federal) aparecer
— disse Cláudio Humberto,
porta-voz da Presidência, naturalmente
fazendo blague, pois
as caixas tinham o selo da Casa
Ouro, importadora de Brasília.
Cleto riu com a brincadeira, tomando-
a mais uma vez como um
elogio.
Perguntei a Cleto onde era o
banheiro. Para quê? O homem
me fez fazer um tour pela casa,
mostrando cada objeto e dando o
p"ereraço de tudo, para provar que do bom e do melhor". Sobre
os tapetes persas, gabou-se, desnudando
a ignorância:
- São no vinhos em folha.
Fui ao banheiro, escondi-me lá
por alguns bons minutos. Quando
voltei à varanda, soubemos
que Collor não iria. A notícia foi
surpreendentemente comemorada.
Eram seis da tarde, todos estavam
somente à base de bacon
e bebidas, a fome era tanta que
Collor já não importava mais: todos
queriam comida. Imediatamente,
uma enorme fila se formou,
e eu, confesso, entre os çrimeiros.
A comida seria servida
em pratos decorados com motivos
florais. E pude ouvir o se»
guinte diálogo entre a dona da
casa e a mulher de Cláudio Humerto,
Thaís:
Não são lindos? perguntou
a sra. Falcão, referindo-se
aos pratos. E acrescentou, em
alagoès:
Eu comprei 24 pratos Igualzinhos:
24 pratos pequenos, 24
pratos rasos e 34 pratos fundos.
Tudo igualzinho disse.
Ali. vou falar com o Claudio. Eu quero também! disse
Thais. fazendo me acreditar que
um aparelho de jantar complcUf.)
deve ser coisa rara em Alagoas.
O meu desapontamento com
aquelas pessoas só não era
maior que a fome, Na minha vez
de experimentar o que supunha
ser o delicioso feijão preto, a decepção
foi ainda maior: o feijão
era mulatinho.
Eu iria ter, porém, naqueles
primeiros dias em Brasília, muitas
outras ocasiões para ficar decepcionado
e perplexo com a
gente que cercava a Presidência.
Com poucas exceções, Marcüio
entre elas, o Governo Collor tinha
gente muito mal-educada.
Lembro-me de um almoço que
tive com Cláudio Vieira, secretário
particular do presidente, responsável
pela administração dos
milhões de dólares das campanhas
publicitárias. Mais tarde,
quando o escândalo PC estourou,
Vieira seria anunciado pelo
próprio Collor como o administrador
de suas contas pessoais,
aquele que manipulava o dinheiro
do que ganhou fama como a
Operação Uruguai. O almoço
não foi em um restaurante, mas
na sede de outro órgão de imprensa,
que me convidara. Fiquei
abismado ao ver a figura.
Baixo, barrigudo (como todos),
terno caro mas desconjuntado,
com o inseparável prendedor de
gravata (todos usavam), Vieira
era a imagem do mau gosto. Fumador
de cachimbo, ele foi logo
exibindo o socador de fumo, para
qualificar:
- É de ouro.
O assunto bateu direto em PC,
e Vieira não escondeu a longa
amizade que os unia.
- Esse eu conheço. Não existe
homem mais inteligente — disse.
E começou a contar como o conhecera,
no seminário menor de
Alagoas, quando ainda er-i
criança:
- Ele e eu quisemos ser padres.
Mas ele, com aquela megalomania,
só pensava em ser Papa
— disse, escancarando numa
gargalhada a boca intervalada.
Animado com a reação da piatéia
— ninguém acreditava que
ambos pudessem ter querido um
dia ser padre — Vieira continuou
animado:
- Minha passagem pelo seminário
foi curta, menor do que a
do Paulo. Eu sempre fui moleque
— disse.
Vieira contou então como fora
expulso do seminário, para dêsgosto
dos pais. Ele tinha 11 anos,
sem vocação, e não tardou a se
embaralhar numa trapalhada.
- Certo dia, entrei na igreja,
de manhã, quando ainda estava
vazia. Fui direto para a gaveta
onde o padre guardava os vinhos.
Abri o primeiro e tomei
todinho. Como tira-gosto, comi
as hóstias. Tomei umas três garrafas
e emburaquei — contou
Vieira, não poupando a audiência
de nenhum detalhe, nem
mesmo os mais desagradáveis,
especialmente quando se está
numa mesa de almoço:
- Vomitei tudo na cara de minha
mãe, assim que cheguei em
casa. Aquele cheiro de vômito
levou muito tempo para desaparecer.
Levei uma sova e me tiraram
do seminário.
Ainda naquele mesmo almoço,
Vieira, mesmo sem ter intimidade
com qualquer dos presentes, falou das "mulherzinhas" que o
cargo lhe permitia comer, falou
de duas ou três boa» boates m
Brasília e, claro, saiu do almoço
torto de tanto uísque.
O álcool, justiça seja feita porém,
não tirava dele a capacida*
de de análise. Dois anos depois,
encontrei-o novamente numa recepção
oficial. A situação do Govemo
Collor era complicada (ja
tinham estourado o escândalo
Alcem e o caso Magri). Naquela
semana, os jornais publicavam
novo escândalo, e a bola da vez
era o secretário de Assuntos Es*
tratégicos, Pedro Paulo Leoni
Ramos, um jovem de 29 anos, excriador
de camarões. Sobre ele,
o jornalista Ricardo Boechat fizera
a seguinte avaliação, após
nossa visita ao seu gabinete, logo
depois de minha chegada a
Brasília:
- Ou é um gênio perfeito e se
faz passar por idiota, ou é um
idiota perfeito que se faz passar
por gênio.
O comentário não era descabido.
Pedro Paulo, na audiência
que nos concedera, não dissera
coisa com coisa. Sempre usando
na ponta do nariz um par de
óculos com aro de ouro, minúsculo
para o tamanhão do rosto,
Pedro Paulo se contorcia para
dizer qualquer palavra, e acabava
balbuciando um amontoado
sem sentido. Lembro que a conversa
era sobre os gastos secretos
da Secretaria, tema de reportagem
publicada dias antes. Boechat,
muito falante, tentava obter
dele alguma explicação, mas
não conseguiu nada. Pedro Paulo
gaguejou mais ou menos o seguinte,
de forma pausada e professoral,
tornando para nós uma
tortura a necessidade de permanecer
sérios:
- Vejam, um gasto secreto,
numa secretaria cqmo a nossa, é
secreto, entende? E um tema sigiloso,
secreto, entende? Mas sob
o ponto de vista orçamentário,
tudo é perfeito, pois o orçamento
prevê verbas secretas, que não
podem portanto ser divulgadas.
Se não podem ser divulgadas,
não posso falar delas. Veja, minha
posição é delicada, eu os recebo
em meu gabinete mas não
sei se devia. De qualquer forma.
o controle dessas verbas é feito
por uma comissão de alto nível.
Secreta, evidentemente.
Falou açsim durante meia hora.
Dois ânos depois, porém, a
situação seria aquela que permitiu
a Cláudio Vieira demonstrar,
na recepção oficial em que nos
encontrávamos, os seus dotes de
analista. O novo escândalo dizia
respeito ao esquema PP (Pedro
Paulo) na Petrobrás, uma rede
de trafico de influência que mexia
com milhões de dólares dos
fundos de pensão. Na recepção,
não se falava de outra coisa.
Vieira, naquela noite bêbado
graças a doses cavalares de conhaque
("Napoleon, eu adoro
Napoleon, põe faz favor mais um
golinho pra mim", ele pedia com
a voz enrolada a todo instante),
estava inconsolável.
- Esse Governo perdeu o rumo.
Em vez de sair na defesa do
Pedro Paulo, o presidente diz
que vai mandar investigar tudo.
Mas investigar o quê? Os jornais
não trazem provas, sõ acusações
em off. Devem ter esquecido que
o ônus da prova cabe a quem
acusa — choramingava Vieira.
No final da festa, já tropeçando
nas próprias pernas, demonstraria
que o álcool melhorava
sua capacidade de análise, ao levantar-
se para gritar:
- Quero anunciar para os que
não sabem: a temporada de caça
começou!
Ele estava certo. Só que, naquele
momento, presumia-se caçador.
Poucos dias depois, convencido
de que a situação era insustentável,
Collor fez uma reforma
ministerial ampla, afastando
do Poder toda a chamada
República de Alagoas, incluindo,
naturalmente, o próprio Vieira e
Pedro Paulo. Fez o tal Ministério
Ético, chamando Célio Borja,
Pratini de Moraes, Ângelo Calmon
de Sá, Celso Lafer, João
Melão, Reinold Stephanes, para
ajudar Marcílio, José Goldemberg,
Adib Jatene e Jorge Bornhausen,
que já estavam no Governo.
Tarde demais, porem, O
estrago produzido pela turma
que cercou o presidente por dois
anos já era desmesurado. A história
oficial, todos conhecem:
abertura de CPI, impeachment, Collor deposto.
O cardeal estava certo.