Foi chocante a reação do Senado ao discurso de estréia de
Fernando Collor na quinta-feira. Collor classificou o seu impeachment como uma "litania de abusos e preconceitos, uma sucessão de
ultrajes e um acúmulo de violações
das mais comezinhas normas legais".
Pondo-se na condição de vítima, atacou a CPI, dizendo que, "a partir de
uma suposição, criou-se uma infâ-
mia". Ninguém se dignou a mostrar
que aquela página de nossa história
não foi, como quer Collor, um momento de arbítrio, mas, ao contrário,
um exemplo de pleno funcionamento
de nossa democracia.
O primeiro a falar, Arthur Virgílio, líder do PSDB, disse que não entraria no
mérito das acusações e fez questão de
eximir o seu partido de culpa: "O meu
partido — e aqui faço justiça também
àquele grande brasileiro chamado Ulysses Guimarães, do PMDB — relutou ao
ponto máximo diante da perspectiva do
impeachment." Tasso Jereissati disse
que o PSDB não se arrependia do que
fizera, mas sublinhou que o país mudou:
fora muito rígido com Collor sem mostrar rigor igual com denúncias recentes:
"Talvez V. Exa
-
tenha sido o homem pú-
blico da história recente do país que pagou o mais alto preço por eventuais erros cometidos — se é que os cometeu."
Aloizio Mercadante, do PT, disse que a
CPI visou a pôr fim a equívocos gravíssimos, mas admitiu: "Excessos, seguramente, ocorreram." Renan Calheiros,
presidente do Senado, ex-aliado e ex-adversário de Collor, último a falar, resumiu o tom da sessão: "É forçoso — for-
çoso mesmo — reconhecer que V. Exa
-
é
hoje maior do que foi um dia."
Para quem, como eu, trabalhou duro
na cobertura daqueles dias, a perplexidade foi inevitável. Será que ninguém ali
se recordava do que havia sido demonstrado pela CPI?
Relembrando: Pedro Collor, irmão do
então presidente, em entrevista à "Veja", denunciou uma sociedade, com fins
escusos, entre Collor e PC Farias, ex-tesoureiro da campanha presidencial.
Quando a CPI rumava para o naufrágio,
o motorista Eriberto França contou aos
brasileiros que pagava despesas da família do presidente com dinheiro sacado de contas de Ana Acioli, secretária
de Collor, abastecidas por PC. Rompido
o sigilo bancário de Acioli, a CPI confirmou que o dinheiro vinha de contas cujos titulares eram fantasmas, todos ligados a PC: entre as provas dessa ligação,
salas comerciais adquiridas por PC e
pagas com cheques administrativos
comprados pelos fantasmas.
Na página 257 do relatório da CPI, o
capítulo "O papel dos 'fantasmas' nos
gastos pessoais do presidente Collor e
sua família" demonstra que as contas
de Acioli movimentaram cerca de US$
2,3 milhões, beneficiando a então mulher, a mãe e a ex-mulher de Collor. A
CPI também encontrou depósitos de
fantasmas diretamente na conta da mulher (US$ 1,3 mil) e da ex-mulher de Collor (US$ 43 mil). Comprovou-se, ainda,
que um Fiat Elba, comprado pelo próprio Collor, fora pago com um cheque
administrativo comprado por um dos
fantasmas de PC. A reforma da Casa da
Dinda, residência do ex-presidente, custou US$ 2,1 milhões, também pagos pelos mesmos fantasmas.
Depois das denúncias do motorista,
Collor demorou um mês para alegar
que o dinheiro vinha de um empréstimo
de US$ 5 milhões, contraído no Uruguai
e administrado por Cláudio Vieira, secretário particular da Presidência. O dinheiro, convertido em ouro, fora posto
sob a guarda de Najun Turner, um doleiro: à medida da necessidade, era vendido. Vieira alegou que desconhecia o
uso de fantasmas por Turner.
A CPI, ao analisar o contrato de empréstimo e ouvir testemunhas, considerou que havia indícios de que a justificativa fora inventada. No dia 29 de setembro, a Câmara aprovou o impeachment de Collor. No dia 29 de dezembro,
o Senado condenou o presidente por
crime de responsabilidade, por considerar que ele quebrara o decoro do cargo. A punição foi a cassação de seus direitos políticos por oito anos, pena
cumprida integralmente.
Diante do senador Collor, seus pares
preferiram não relembrar esses fatos,
esquecendo-se de que os jovens não conhecem essa história.
No processo criminal, e apenas nele,
a defesa de Collor alegou que os milhões que o beneficiaram vinham, além
do empréstimo no Uruguai, de sobras
de doações eleitorais, centralizadas por
PC na conta de um fantasma. Não havendo dúvidas de que o ex-presidente
recebera dinheiro de PC, o STF debateu
se, para condená-lo por corrupção passiva, seria necessário demonstrar que,
em troca, algum ato ou omissão de Collor na Presidência beneficiara o ex-tesoureiro. O Ministério Público não foi
capaz de demonstrar essa relação. Cinco ministros entenderam que isso era
necessário; três consideraram que bastava provar que o presidente recebera
vantagem indevida. Como a maioria dos
ministros também considerou plausível
a alegação de que os milhões vieram de
sobras de campanha, o que, à época,
não era ilegal, Collor foi absolvido por 5
a 3. Os responsáveis pela criação dos
fantasmas foram condenados por falsidade ideológica. Collor teve de se explicar à Receita por não ter pago imposto
de renda sobre o que recebeu, mas a
ação penal por sonegação foi extinta
porque o MP perdeu prazos.
Há incongruência entre o julgamento
do Congresso e do STF? Sidney Sanches, ex-ministro do Supremo, que presidiu um julgamento e participou do outro, em entrevista ao "Valor Econômico", declarou: "Pode haver condenação
em um e absolvição em outro. O processo de impeachment, sendo político,
é julgado por políticos. São juízes políticos sob a seguinte questão: qual o
conceito de falta de decoro? (...) É falta
de compostura e de vergonha no exercício do mandato. Quem emite conceito
político e julga fatos políticos em um
ambiente político não são os mesmos
que julgam de acordo com o Direito. No
julgamento do Collor no STF, o que se
julgou foi corrupção passiva. E o tribunal entendeu que não estava configurado o crime de corrupção passiva."
Este é um país, portanto, em que o
decoro pode ser quebrado sem infringir
o código penal.