"Como queria Bin Laden", O Globo, 16/03/2004 | Artigo - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Como queria Bin Laden", O Globo, 16/03/2004

Quando vi pela televisão os simpatizantes do Partido Socialista Operário Espanhol, em frente às sedes do Partido Popular, com cartazes onde se lia a palavra "paz", levei um susto. Eles cobravam a verdade sobre a autoria dos atentados de Madri, que o governo insistia em atribuir ao ETA. Mas por que pedir "paz" aos partidários de Aznar? A leitura não poderia ser outra: eles atribuíam a culpa pelos atentados à decisão de Aznar de apoiar a guerra do Iraque. Ou seja, os culpados não seriam os membros da al-Qaeda, mas o governo espanhol. Foi política eleitoral feita em cima de cadáveres. Os espanhóis concordaram com a tese e acabaram dando a vitória aos socialistas. Mas o vitorioso não foi o PSOE. O vitorioso foi Osama bin Laden.

A derrota do PP foi uma surpresa. Às vésperas do atentado, ele era o franco favorito nas pesquisas, porque fez a Espanha crescer e criou 4,5 milhões de empregos. Era de se imaginar que o atentado faria o povo se unir ainda mais em torno de seu governo. Desafiado por um atentado monstruoso cujo objetivo era justamente atingir Aznar, o povo espanhol não tinha outra saída moral senão apoiá-lo. Se não tivesse havido atentado, teria sido legítimo derrotá-lo, caso o povo não tivesse superado a irritação de um ano e meio antes, quando Aznar contrariou 90% dos eleitores e apoiou a guerra. Mas, diante dos 200 cadáveres, derrotá-lo foi a pior mensagem que os espanhóis poderiam dar ao mundo. Aznar foi punido, não tanto porque teria mentido ao acusar primeiro o ETA, mas porque, ao apoiar a guerra, teria colocado o país na mira da al-Qaeda. Este é, porém, um pensamento torto, covarde, que vive no mundo da ilusão. "Não mexamos com eles que eles não mexerão conosco". Porque, na lógica da al-Qaeda, ninguém está a salvo. O presidente de governo eleito já anunciou que retirará as tropas espanholas do Iraque. Como quer Bin Laden.

As Nações Unidas já tinham dado recado semelhante: depois do atentado que matou seus funcionários em Bagdá, abandonaram o Iraque. Os dois exemplos dão à al-Qaeda a certeza de que o caminho perverso dos atentados é eficaz. Até o resultado das eleições espanholas, eu estava confiante em que, depois da tragédia, a Europa finalmente entenderia o poder do inimigo. Quando vi todos os chefes de Estado demonstrando indignação, imaginei que dali fosse sair um plano para uma ação conjunta e decisiva para enfrentar o que o mundo tem de fato pela frente: uma guerra entre os que defendem a liberdade de pensamento, os direitos humanos, os mais altos valores da Humanidade e aqueles que vivem num mundo em que não há lugar para a razão.

Mas ainda não foi dessa vez. O que vemos é França, Itália, Alemanha, mortas de medo, tentando incrementar medidas internas de segurança para evitar novos ataques. Como se a questão fosse de polícia. Não percebem que medida alguma de segurança pode evitar um ataque como os da alQaeda. Se os aviões estão impenetráveis, eles vão para os trens. Se os trens estiverem impenetrá- veis, eles seguirão para o metrô. E se um dia for possível tornar seguro o transporte de massa, os terroristas acharão outras multidões para matar. O trágico é que a derrota de Aznar fará cada político europeu pensar duas vezes antes de aderir com a intensidade necessária à guerra antiterror. Tomarão medidas profiláticas, mas temo que não terão coragem de bater de frente com o inimigo. Vão se apequenar, temendo que seus paí- ses virem alvo preferencial e que, depois, na fatalidade de um atentado, sejam corridos do poder. Como na Espanha. Não percebem que não há saída: a França não apoiou a guerra, mas treme de medo porque ousou fazer valer seus princípios republicanos e proibiu o uso do véu.

Não, nem todos se deram conta de quem é o inimigo: um grupo que imagina que fala com Deus, vê a todos que pensam de forma diferente como seres impuros e é dono de uma verdade que quer impor ao mundo pela força. O inimigo se diz muçulmano, mas é apenas uma seita enlouquecida de um ramo já enlouquecido do islamismo. Combatê-lo é urgente. O inimigo está confiante. Na carta em que assume o atentado, ele sequer esconde futuros passos: "Trazemos boas novas aos muçulmanos do mundo: o ataque dos 'ventos da morte negra' nos Estados Unidos está agora em estágio final e, queira Deus, em breve pronto".