O ministro da Educação, Tarso Genro, pediu pressa aos
congressistas para que votem logo o projeto de lei
que institui a adoção de cotas raciais
e sociais nas universidades federais
brasileiras. Eu peço o contrário: calma e cautela. Os cotistas se baseiam
na premissa de que os negros vivem
pior do que os brancos por racismo.
Com apoio em números do IBGE, querem demonstrar que o nosso ideal de
nação não passa de ficção: em vez de
sermos um país que se orgulha de sua
miscigenação, seríamos uma nação
bicolor, em que os brancos oprimem
os negros. Tenho escrito que os nú-
meros não mentem, mas enganam
quem não os sabe ler. O que os cotistas têm feito é comparar alhos com
bugalhos. Mas, para que os números
digam a verdade, é preciso comparar
alhos com alhos e bugalhos com bugalhos. É o que pretendo fazer aqui.
Se alguém pegar a massa de números relativos a todos os brancos do
país e comparar com a massa de nú-
meros relativos a todos os negros do
país, como fazem os cotistas, não estará chegando a lugar algum. Porque
a média de todos os brancos somados — os paupérrimos, os pobres, os
de classe média, os ricos, os milioná-
rios — são uma ficção, o branco mé-
dio só existe nas estatísticas. Assim
como o negro médio também não
existe na vida real. De pouco nos serve, portanto, saber que um branco
em relação a um negro, em média, é
tantas vezes menos analfabeto, tem
tantos anos a mais de escolaridade ou
recebe um salário tantas vezes maior.
É preciso comparar brancos e negros de mesma característica. Se houver diferenças, aí, então, talvez, se
possa buscar, entre as razões, o racismo.
O máximo que os pesquisadores fazem é pegar
grandes grupos e compará-los. Por exemplo: os
25% mais pobres entre os
negros e os 25% mais pobres entre os brancos.
Mas estes dois grupos não
são iguais: neles estão negros e brancos residentes em áreas
urbanas e rurais, com nenhum, um,
dois, três ou quatro filhos, com rendas que variam de zero até o limite
máximo escolhido. Com tantas variáveis, os dois grupos não são comparáveis. E as diferenças encontradas entre eles podem ter muitos motivos: racismo, número de filhos,
área de domicílio (rural ou urbana),
renda .
Nem mesmo o critério de renda,
isoladamente, resolve o problema.
Suponhamos que se comparem brancos e negros que tenham R$ 100 de
renda per capita. Mesmo assim, os
dois grupos não são iguais. Um casal
negro com quatro filhos, morador da
Zona Rural, mesmo tendo uma renda
per capita de R$ 100, tem uma vida
completamente diferente de um casal branco, morador de Zona Urbana,
com renda per capita de R$ 100, mas
sem filhos. O primeiro, apesar de ter
renda familiar total de R$ 600 (o casal, mais quatro filhos) talvez viva
pior do que o segundo, com renda total de R$ 200. Porque criar, em sentindo amplo (educar, divertir, vestir,
tratar da saúde) quatro crianças é extremamente dispendioso.
A meu pedido, o estatístico Elmo Iorio pegou os
dados brutos da Pesquisa
Nacional de Amostra Domiciliar do IBGE de 2003,
acessíveis num CD-ROM a
todos os brasileiros, e fez
as tabulações relativas a
brancos e negros, residentes em áreas urbanas,
com um filho e rendimento familiar total de até
dois salários (pobres,
portanto). São grupos
comparáveis, porque, ao menos em
tese, têm as mesmas condições de vida, as mesmas possibilidades. É comparar alhos com alhos. Eu poderia
ter escolhido brancos e negros da
área rural, com dois filhos e renda de
três salários-mínimos, ou brancos e
negros com quaisquer outras características, não importa: o importante
é que os grupos fossem comparáveis.
Se um grupo estiver numa condição
social melhor do que a do outro, a razão pode ser de fato o racismo.
Feita a comparação entre os dois
grupos que escolhi, o resultado foi o
que eu esperava: brancos e negros
pobres têm as mesmas dificuldades,
o mesmo perfil. Onde está o racismo?
Nas contas de quem confunde alhos
com bugalhos.
A pesquisa de Iorio mostra que a
semelhança entre os dois grupos é
constante e que as diferenças numé-
ricas são estatisticamente desprezí-
veis. 72% dos brancos, 73% dos pretos e 69% dos pardos sabem ler e escrever. A média de anos de estudo,
para os brancos, pretos e pardos é de
5 anos. 28% dos brancos, 28% dos
pretos e 29% dos pardos têm entre
quatro e sete anos de estudo. 9% dos
brancos, 9% dos negros e 7% dos pardos estudaram entre 11 e 14 anos.
Praticamente nenhum branco, preto
ou pardo estudou mais de 15 anos. O
ensino fundamental foi o curso mais
elevado que 55% dos brancos, 56%
dos pretos e 62% dos pardos freqüentaram. Já para 22% dos brancos, 22%
dos pretos e 19% dos pardos, o curso
mais elevado que já freqüentaram foi
o ensino médio. O número de brancos, pretos e pardos que concluíram
o ensino superior é desprezível.
A vida é difícil tanto para brancos,
pretos e pardos: 43% dos brancos,
44% dos negros e 45% dos pardos começaram a trabalhar entre os dez e
os 14 anos de idade; 25% dos brancos, 26% dos pretos e 24% dos pardos começaram a trabalhar um pouco mais tarde, entre os 15 e os 17
anos de idade. A maior parte dos
brancos, pretos e pardos ou não tem
carteira assinada ou trabalha por
conta própria: 23% dos brancos, 24%
dos pretos e 25% dos pardos não têm
carteira assinada; e 24% dos brancos,
23% dos pretos e 27% dos pardos trabalham por conta própria. Há muitos
outros dados, mas estes são os essenciais.
Esta pesquisa não deixa dúvidas
de que não é a cor da pele que impede as pessoas de chegar à universidade, mas a péssima qualidade das
escolas que os pobres brasileiros, sejam brancos, pretos ou pardos, podem freqüentar. Se o impedimento
não é a cor da pele, cotas raciais não
fazem sentido. Mas tampouco fazem
sentido cotas sociais, porque não é a
condição de pobre que impede os cidadãos de entrar na universidade,
mas o péssimo ensino público brasileiro. A única solução é o investimento maciço em educação, e jamais soluções mágicas como cotas.
Onde quer que sejam adotadas, as
cotas não beneficiam os mais necessitados, mas apenas os mais afortunados entre os necessitados. Elas
agravam os conflitos onde eles existem, em vez de atenuá-los, e fazem
surgir disputas mortais entre os potencialmente favorecidos e os não-favorecidos, grupos que antes conviviam harmoniosamente. Tudo isto
está provado em "Ações afirmativas
ao redor do mundo, um estudo empírico", livro de Thomas Sowell, pesquisador da Stanford University, que
estudou o efeito das cotas nos EUA,
Índia, Malásia, Sri Lanka e Nigéria. O
livro, com prefácio esclarecedor do
historiador José Roberto Pinto de
Góes, está sendo lançado no Brasil
até o fim do mês pela editora UniverCidade. Ninguém devia deixar de lê-
lo, especialmente os congressistas
que estão prestes a apreciar uma matéria — a adoção de cotas — que pode mudar o país. Para pior.