"Aos congressistas, uma carta sobre cotas", O Globo, 16/11/2004 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Aos congressistas, uma carta sobre cotas", O Globo, 16/11/2004

O ministro da Educação, Tarso Genro, pediu pressa aos congressistas para que votem logo o projeto de lei que institui a adoção de cotas raciais e sociais nas universidades federais brasileiras. Eu peço o contrário: calma e cautela. Os cotistas se baseiam na premissa de que os negros vivem pior do que os brancos por racismo. Com apoio em números do IBGE, querem demonstrar que o nosso ideal de nação não passa de ficção: em vez de sermos um país que se orgulha de sua miscigenação, seríamos uma nação bicolor, em que os brancos oprimem os negros. Tenho escrito que os nú- meros não mentem, mas enganam quem não os sabe ler. O que os cotistas têm feito é comparar alhos com bugalhos. Mas, para que os números digam a verdade, é preciso comparar alhos com alhos e bugalhos com bugalhos. É o que pretendo fazer aqui.

Se alguém pegar a massa de números relativos a todos os brancos do país e comparar com a massa de nú- meros relativos a todos os negros do país, como fazem os cotistas, não estará chegando a lugar algum. Porque a média de todos os brancos somados — os paupérrimos, os pobres, os de classe média, os ricos, os milioná- rios — são uma ficção, o branco mé- dio só existe nas estatísticas. Assim como o negro médio também não existe na vida real. De pouco nos serve, portanto, saber que um branco em relação a um negro, em média, é tantas vezes menos analfabeto, tem tantos anos a mais de escolaridade ou recebe um salário tantas vezes maior. É preciso comparar brancos e negros de mesma característica. Se houver diferenças, aí, então, talvez, se possa buscar, entre as razões, o racismo.

O máximo que os pesquisadores fazem é pegar grandes grupos e compará-los. Por exemplo: os 25% mais pobres entre os negros e os 25% mais pobres entre os brancos. Mas estes dois grupos não são iguais: neles estão negros e brancos residentes em áreas urbanas e rurais, com nenhum, um, dois, três ou quatro filhos, com rendas que variam de zero até o limite máximo escolhido. Com tantas variáveis, os dois grupos não são comparáveis. E as diferenças encontradas entre eles podem ter muitos motivos: racismo, número de filhos, área de domicílio (rural ou urbana), renda .

Nem mesmo o critério de renda, isoladamente, resolve o problema. Suponhamos que se comparem brancos e negros que tenham R$ 100 de renda per capita. Mesmo assim, os dois grupos não são iguais. Um casal negro com quatro filhos, morador da Zona Rural, mesmo tendo uma renda per capita de R$ 100, tem uma vida completamente diferente de um casal branco, morador de Zona Urbana, com renda per capita de R$ 100, mas sem filhos. O primeiro, apesar de ter renda familiar total de R$ 600 (o casal, mais quatro filhos) talvez viva pior do que o segundo, com renda total de R$ 200. Porque criar, em sentindo amplo (educar, divertir, vestir, tratar da saúde) quatro crianças é extremamente dispendioso. A meu pedido, o estatístico Elmo Iorio pegou os dados brutos da Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar do IBGE de 2003, acessíveis num CD-ROM a todos os brasileiros, e fez as tabulações relativas a brancos e negros, residentes em áreas urbanas, com um filho e rendimento familiar total de até dois salários (pobres, portanto). São grupos comparáveis, porque, ao menos em tese, têm as mesmas condições de vida, as mesmas possibilidades. É comparar alhos com alhos. Eu poderia ter escolhido brancos e negros da área rural, com dois filhos e renda de três salários-mínimos, ou brancos e negros com quaisquer outras características, não importa: o importante é que os grupos fossem comparáveis. Se um grupo estiver numa condição social melhor do que a do outro, a razão pode ser de fato o racismo.

Feita a comparação entre os dois grupos que escolhi, o resultado foi o que eu esperava: brancos e negros pobres têm as mesmas dificuldades, o mesmo perfil. Onde está o racismo? Nas contas de quem confunde alhos com bugalhos.

A pesquisa de Iorio mostra que a semelhança entre os dois grupos é constante e que as diferenças numé- ricas são estatisticamente desprezí- veis. 72% dos brancos, 73% dos pretos e 69% dos pardos sabem ler e escrever. A média de anos de estudo, para os brancos, pretos e pardos é de 5 anos. 28% dos brancos, 28% dos pretos e 29% dos pardos têm entre quatro e sete anos de estudo. 9% dos brancos, 9% dos negros e 7% dos pardos estudaram entre 11 e 14 anos. Praticamente nenhum branco, preto ou pardo estudou mais de 15 anos. O ensino fundamental foi o curso mais elevado que 55% dos brancos, 56% dos pretos e 62% dos pardos freqüentaram. Já para 22% dos brancos, 22% dos pretos e 19% dos pardos, o curso mais elevado que já freqüentaram foi o ensino médio. O número de brancos, pretos e pardos que concluíram o ensino superior é desprezível.

A vida é difícil tanto para brancos, pretos e pardos: 43% dos brancos, 44% dos negros e 45% dos pardos começaram a trabalhar entre os dez e os 14 anos de idade; 25% dos brancos, 26% dos pretos e 24% dos pardos começaram a trabalhar um pouco mais tarde, entre os 15 e os 17 anos de idade. A maior parte dos brancos, pretos e pardos ou não tem carteira assinada ou trabalha por conta própria: 23% dos brancos, 24% dos pretos e 25% dos pardos não têm carteira assinada; e 24% dos brancos, 23% dos pretos e 27% dos pardos trabalham por conta própria. Há muitos outros dados, mas estes são os essenciais.

Esta pesquisa não deixa dúvidas de que não é a cor da pele que impede as pessoas de chegar à universidade, mas a péssima qualidade das escolas que os pobres brasileiros, sejam brancos, pretos ou pardos, podem freqüentar. Se o impedimento não é a cor da pele, cotas raciais não fazem sentido. Mas tampouco fazem sentido cotas sociais, porque não é a condição de pobre que impede os cidadãos de entrar na universidade, mas o péssimo ensino público brasileiro. A única solução é o investimento maciço em educação, e jamais soluções mágicas como cotas.

Onde quer que sejam adotadas, as cotas não beneficiam os mais necessitados, mas apenas os mais afortunados entre os necessitados. Elas agravam os conflitos onde eles existem, em vez de atenuá-los, e fazem surgir disputas mortais entre os potencialmente favorecidos e os não-favorecidos, grupos que antes conviviam harmoniosamente. Tudo isto está provado em "Ações afirmativas ao redor do mundo, um estudo empírico", livro de Thomas Sowell, pesquisador da Stanford University, que estudou o efeito das cotas nos EUA, Índia, Malásia, Sri Lanka e Nigéria. O livro, com prefácio esclarecedor do historiador José Roberto Pinto de Góes, está sendo lançado no Brasil até o fim do mês pela editora UniverCidade. Ninguém devia deixar de lê- lo, especialmente os congressistas que estão prestes a apreciar uma matéria — a adoção de cotas — que pode mudar o país. Para pior.