N o momento em que o Brasil
está prestes a adotar cotas
raciais, rompendo com sua
tradição legal de tratar os
brasileiros sem distinção de raça ou
cor, um livro lançado em março nos
EUA é leitura obrigatória: "Ação afirmativa ao redor do mundo, um estudo empírico", de Thomas Sowell, um
dos mais renomados intelectuais
americanos. O livro é uma pesquisa
sobre o efeito das ações afirmativas e
da adoção de cotas em Índia, Malásia,
Sri Lanka, Nigéria, Estados Unidos e
outros países. As conclusões, calcadas em fatos e números, são demolidoras. Editar o livro em português seria um serviço à nação.
Quando as cotas surgiram, na Índia, seus defensores diziam que elas
durariam dez anos. Isso foi em 1949, e
até hoje elas estão em vigor, ampliadas. O mesmo aconteceu em toda
parte. O motivo é simples: depois de
conceder, que político se dispõe a retirar um benefício e correr o risco de
perder a eleição? O mesmo motivo explica uma segunda característica.
Uma vez adotadas políticas de preferência para um grupo, logo surgem
políticos propondo a adoção de
ações similares para outros grupos,
sempre em busca de votos. As cotas
na Índia, para citar apenas um exemplo, destinavam-se a beneficiar os então chamados intocáveis, que representavam 16% da população, e membros de outras poucas tribos fora do
sistema de castas (8%). A lei abria,
porém, uma brecha, dizendo que as
cotas poderiam também beneficiar
"outras classes atrasadas". Foi o bastante para que, hoje, o maior número
de cotas beneficiem essas "outras
classes", que representam 52% da população, e não apenas os intocáveis.
Uma vez adotadas, os grupos que ficam de fora das cotas usam toda sorte
de "desonestidade". Quando, nos EUA,
cotas foram adotadas para beneficiar
descendentes de índios, houve um aumento exponencial de indivíduos, muitos deles louros de olhos azuis, dizendo-se membros daquela minoria (lembra a Uerj?). O censo de 1960 mostrava
que havia 50 mil descendentes de índios com idade ente 15 e 19 anos. Vinte
anos depois, o número de descendentes de índios com idade entre 35 e 39
anos era de mais de 80 mil, uma impossibilidade biológica. Na China, nos
anos 90, dez milhões se redesignaram
como membros de minorias, para se
beneficiar dos acessos facilitados a
universidades e para burlar a proibi-
ção de ter mais de um filho, imposta à
etnia majoritária Han.
Sowell prova também que tais políticas não beneficiam seus destinatá-
rios iniciais, mas apenas os mais afortunados do grupo. Na Índia, 63% dos
intocáveis continuam analfabetos. Na
Malásia, onde cotas privilegiam os
malaios contra seus concidadãos chineses, os estudantes das famílias malaias que constituem os 17% mais ricos recebem metade de todas as bolsas. O livro está repleto de exemplos,
inclusive dos EUA. Em nenhum caso,
trata-se de corrupção: cotas são apenas um dos fatores para se entrar na
universidade. Igualmente essenciais
são o preparo intelectual e o nível
econômico. Quem sabe mais e é mais
rico, mesmo pertencendo a uma minoria discriminada, terá mais chances do que aqueles que são menos
preparados e mais pobres.
A grande tragédia que as políticas
de preferências e de cotas acarretam
é o ódio racial. O sentimento de que o
mérito não importa esgarça o tecido
social. Na Índia, os registros de atrocidades contra os intocáveis eram de
13 mil nos anos 80; pularam para mais
de 20 mil nos anos 90 (o número de
mortos era quatro vezes maior nos 90
do que nos 80); Na Nigéria, a adoção
de políticas de preferência racial levou a uma guerra civil, provocando o
cisma que criou Biafra (mais tarde
reincorporada), sinônimo de fome e
miséria. Sri Lanka, quando da independência, era uma nação em que
duas etnias, com língua e religião diferentes, conviviam harmoniosamente. Com a adoção de políticas de preferência racial, o que se viu foi uma
das mais sangrentas guerras civis.
Nos EUA, o número de conflitos raciais foi crescente a partir da década
de 70, ano de adoção das cotas.
O pior de tudo é que as cotas não
são necessárias. Nos EUA, os chineses e os japoneses que lá chegaram
no início do século passado eram miseráveis. Por esforço próprio e sem
cotas, esses dois grupos se desenvolveram, educaram-se e, ao longo dos
anos, proporcionalmente, tomaram
mais lugares dos brancos americanos
em universidades de prestígio e em
bons postos de trabalho do que os
negros com cotas. Apesar disso, contra eles não há o ressentimento que
há contra os negros, porque a percep-
ção é que os asiáticos alcançaram isso por mérito, e os negros, não. A percepção, no entanto, é falsa e injusta.
Porque os negros americanos avançaram mais, muito mais, antes da ado-
ção das cotas, do que depois dela.
Em 1940, os jovens negros americanos entre 25 e 29 anos tinham, em mé-
dia, 4 anos de estudo a menos do que
os jovens brancos. Em 20 anos, a diferença caiu para 2 anos. E, em 1970, a
diferença era de menos de um ano,
12,1 contra 12,7. Em 1940, 87% dos negros estavam abaixo da linha da pobreza. Em 1960, este número caiu dramaticamente para 47%, uma queda de
40 pontos. Todos esses avanços foram conseguidos sem a ajuda de ninguém. A Lei dos Direitos Civis, que garantiu a igualdade das raças, é de
1964 e as cotas só surgiram depois de
1970. Nos anos 60, o número de negros abaixo da linha da pobreza caiu
mais 17 pontos, ficando em 30%. Depois da adoção das cotas, porém, em
toda a década de 70, esse número
caiu apenas um ponto, ficando em
29%. Negros que conseguiram sozinhos esse estrondoso êxito são vistos
hoje pela maior parte dos brancos como em débito porque teriam alcançado tal feito, não por mérito, mas devido a cotas. (Aqui, é inevitável que
eu faça um paralelo com o Brasil. Em
1991, 74% das crianças negras estavam nas escolas, contra 86% das
brancas; hoje, cem por cento delas
estão na escola, passo fundamental
para que tenham chance de entrar na
universidade. Em vez de radicalizar
esse processo, aumentando a qualidade do ensino básico, e assim dar
chances iguais para que negros e
brancos entrem na universidade, o
Brasil está prestes a adotar as cotas
que apenas acrescentarão mais um
estigma ao negro brasileiro como
aconteceu nos EUA: o de ingressar na
universidade sem mérito.)
Se as cotas pouco impacto tiveram
na ascensão econômica dos negros,
quem, então, se beneficiou delas? Os
negros que já tinham conseguido, por
esforço próprio, sair da condição de
pobreza. De 1967 a 1992, os 20% mais
ricos entre os negros tiveram sua renda crescendo a uma taxa igual à dos
20% mais ricos entre os brancos; mas
os 20% mais pobres entre os negros
tiveram uma queda duas vezes maior
nos rendimentos do que os 20% mais
pobres entre os brancos.
Na verdade, as cotas foram contraproducentes. Uma lei no Texas permitiu a entrada na universidade de todos os alunos que estivessem entre
os 10% mais aptos de suas escolas.
Um estudante da escola "A", mais fraca, poderia estar entre os 10% mais
aptos apenas com uma nota 5, e teria,
assim, o ingresso garantido na universidade. E um aluno da escola "B", muito mais forte, com nota 8, poderia ficar de fora se os 10% mais aptos da
escola tivessem notas maiores. O resultado é que passou a ser tentador
para bons alunos se matricular em escolas de ensino ruim, para que o acesso à universidade estivesse garantido. Isso dá bem a medida do que pode acontecer aqui com as cotas para
alunos da rede pública. Como alguns
estudantes já disseram, vai ser maci-
ça a transferência de alunos de boas
escolas particulares para a rede pú-
blica ou, pelo menos, a dupla matrí-
cula crescerá muito. E quem sairá
perdendo serão os alunos pobres,
que terão escolas superlotadas e com
qualidade decrescente.
Há outros aspectos bizarros nos
EUA. Estudo de 1988 mostrou que as
notas no SAT (uma espécie de Enem)
de estudantes cotistas em Berkeley,
universidade de elite, eram de 952 pontos, acima da média nacional de 900,
mas muito abaixo das notas dos demais alunos de Berkeley: brancos, com
1.232, e asiáticos, 2.254. Eram alunos
negros maravilhosos, que teriam um futuro brilhante em muitas outras universidades. Mas, em Berkeley, 70% deles
não se formaram. O fracasso não aconteceu somente nas escolas de elite. Na
Universidade de San José, menos disputada, também 70% dos cotistas não
se formaram. O trágico é que é altamente provável que os 70% de cotistas
reprovados em Berkeley tivessem obtido êxito em San José, onde teriam entrado sem a necessidade de cotas.
Os brasileiros que se dispuserem a
ler o livro de Sowell (e recomendo que
congressistas e ministros o façam) sairão com uma angústia no peito. Errar,
por ter boas intenções, é uma coisa.
Errar, ignorando toda a experiência internacional sobre o assunto, é caminhar conscientemente para o desastre. Os negros brasileiros não precisam de favor. Precisam apenas de ter
acesso a um ensino básico de qualidade, que lhes permita disputar de igual
para igual com gente de toda cor.