Tenho dito que tanto Kerry
quanto Bush, se eleitos, farão tudo o que é preciso fazer para combater o novo
totalitarismo que ameaça o mundo: o
terrorismo islâmico. Portanto, para
mim, um ou outro tanto faz. Basta se
sentar naquela cadeira para que as
coisas caminhem como têm de caminhar. Mas, ao assistir ao debate de
quinta-feira, não pude deixar de ficar
impressionado com as análises que
correram o mundo. Kerry teria ganhado de Bush porque se mostrou
mais consistente, mais sofisticado
em suas análises, intelectualmente
muito superior ao adversário. Kerry
pode ser isso tudo, mas, no debate,
levado pelo marketing eleitoral, ele
foi simplista, reducionista, aquele
com a visão mais estreita sobre o
grande desafio que o mundo enfrenta. Ao longo de uma hora e meia, repetiu sem parar que o inimigo tinha
um nome, Osama bin Laden, e que ca-
çá-lo era tudo que o presidente dos
EUA precisava fazer.
Diante dessa análise, a de Bush,
apesar de seu olhar de esquisitão,
seu jeito às vezes meio balbuciante
de falar e seu vocabulário restrito,
era mais sofisticada e próxima da
realidade. Porque imaginar que a
guerra contra o terror se limita a pôr
atrás das grades Bin Laden (ou a matá-lo) soa tão ridículo como a piada
que Kerry tentou fazer com Bush, ao
dizer que invadir o Iraque como conseqüência do 11 de Setembro era o
mesmo que Roosevelt ter invadido o
México para reagir ao bombardeio de
Pearl Harbor. Boa piada, mas somente isso. O cowboy ali parecia Kerry,
querendo "acertar contas" com o inimigo da América. Papéis trocados?
Prender ou matar Bin Laden terá
apenas o efeito de satisfazer o ego
americano, mas a ameaça do terror
islâmico continuará a mesma. Kerry,
eu sei, estava cumprindo o que seus
marqueteiros mandaram, mas o perfil de Bin Laden que ele traçou parecia o de um Batman do mal, comandando o terror islâmico mundial de
dentro de alguma caverna de Torabora (a insistência dele nesse nome sonoro era até engraçada, apesar de
não haver nenhuma prova de que Bin
Laden tenha andado por lá). Uma vez
liquidado, pronto: os seus comparsas mundo afora poriam as mãos na
cabeça e, em fila indiana, se entregariam para a polícia, como num desenho animado.
Dar a entender ao público americano que o fim de Bin Laden é o fim do
terrorismo islâmico, ou um passo decisivo, é levá-lo a um "colossal erro
de julgamento", para usar uma expressão "marqueteiramente" usada o
tempo inteiro por Kerry. Da mesma
forma, ele foi contraditório. O candidato repetiu à exaustão que, para
agir, não aceitará veto de nenhum organismo internacional ou nação ou
conjunto de nações toda vez que a
segurança dos EUA estiver em perigo. Ou seja, ele agirá, se preciso, unilateralmente. Mas, no minuto seguinte, ao tentar se diferenciar de Bush,
ele disse que, antes de agir, será sempre necessário passar "no teste global", ou seja, é preciso ter o aval do
mundo. Ora, como entender as duas
coisas?
Em oposição a Kerry, Bush parecia
ter uma visão muito mais completa
sobre o que acontece no mundo. Se
de fato Bush tiver um dia sido o ignorante simplório que dizem que ele
é, parece que quatro anos na Casa
Branca ensinaram a ele alguma coisa.
Porque, de fato, o terrorismo islâmico é um fenômeno mundial, é preciso
combatê-lo em múltiplas frentes, e
não apenas nas montanhas de Torabora. Os fanáticos do Islã não precisam mais de um líder. Aliás, ter um
líder a ser cultuado e seguido é contra a essência do que acreditam: "Só
há um líder, e este é Deus." A gênese
desse grupo remonta a 1928, com a
criação da Irmandade Muçulmana e
sua ideologia foi se consolidando
com a contribuição de muitos pensadores, como Hasan Al-Banna, Sayyd
Qutb e Abdulah Azzem. Para essa
gente, os muçulmanos vivem mal
porque não cumpriram o que Deus
determinou no Alcorão: devem eles
próprios viver uma vida de acordo
com a verdade revelada e espalhar
essa verdade para todo o mundo, literalmente. É a isso que os terroristas se dedicam: impor a sua verdade
a todos nós, porque esta é a vontade
de Deus. Se, para este fim, usam
aviões ou carros-bombas é apenas
porque ainda não conseguiram encontrar uma maneira de fazer uso da
capacidade nuclear do Ocidente contra o próprio Ocidente. Se conseguirem, farão. Porque não há diferença
entre se matar para matar centenas,
usando dinamite, ou se matar e matar centenas de milhares com algum
artefato nuclear. É apenas questão de
oportunidade.
Onde entra o Iraque nessa histó-
ria? De duas maneiras. Depois do megaatentado de 11 de setembro, realizado por um grupo que tinha o abrigo apenas de um estado pária como
o Afeganistão, os EUA não podiam se
dar ao luxo de permitir que o Iraque,
muito mais rico e forte, pudesse, um
dia, acolher terroristas. O próprio
Kerry, antes das primárias, para justificar seu voto a favor da guerra, dizia que o mundo tinha todos os motivos para acreditar que o Iraque pudesse de fato ter armas de destruição
em massa: de 91 a 98, a quantidade
de armas encontradas pelos inspetores era superior ao que todos tinham
imaginado; como o Iraque ficou quatro anos sem inspeção, era legítimo
supor que o país tivesse recomposto
seu arsenal. De outro lado, tanto Kerry quanto Bush sabem que o grande
problema a ser enfrentado é a Arábia
Saudita, ninho das justificativas ideológicas dos terroristas. A coroa saudita tem se mostrado reticente, deixando de atuar frontalmente contra
os clérigos radicais com medo ela
própria de agravar o conflito interno.
Enfrentar essa situação é um imperativo, reconhecem os dois candidatos,
mas como fazê-lo, se a Arábia responde por boa parte das exportações
mundiais de petróleo?
Para Kerry, livrar o mundo dessa
dependência é prioridade, mas a receita dele é investir pesadamente em
tecnologia para que em dez anos fontes alternativas de energia possam
ser descobertas. A questão é: o mundo pode esperar até lá? A invasão do
Iraque seria um atalho, triplamente
vantajoso: livraria o mundo de Saddam e os EUA, de uma ameaça potencial, levaria um experimento democrático para uma região onde só há
déspotas e faria jorrar petróleo para
suprir o mercado internacional na
eventualidade de um conflito com a
Arábia Saudita. Coisas que não se dizem em debates.
Não se discute que o Iraque está
num caos. Mas, se eleito, Kerry sabe
que terá de tentar estabilizar o país a
qualquer preço. E, quando isso acontecer, ele agradecerá a Bush por ter
aberto o caminho para o resto do trabalho. Fora de debates, os americanos costumam ter perspectiva histórica.