O leitor interessado no assunto já tem um veredicto a respeito da repórter Judith Miller, do "New York Times": antiética, incompetente e mau caráter. Pelo que se lê aqui e lá fora, ela publicou
inúmeras reportagens atestando que
Saddam possuía armas de destruição
em massa, e deu, assim, sustentação à
principal alegação dos EUA para invadir o país. Muito mais tarde, com a reputação em ruínas, Miller passou 85
dias na cadeia alegando que preferia a
prisão a ter de revelar o nome de uma
fonte, mas, na verdade, tudo não passou de uma manobra para que ela pudesse ressurgir como heroína. Será fato? O "Times" publicou uma crítica sobre sua cobertura da guerra em maio
de 2004, citando 16 reportagens problemáticas, sendo que nove delas anteriores à invasão e, destas, quatro, as mais
polêmicas, de autoria de Miller.
Em 20 de dezembro de 2001, Miller
publicou a reportagem "Desertor iraquiano relata obras em 20 ou mais esconderijos de armamentos", em que
Adnan Saeed diz que trabalhou em reformas de instalações para armas biológicas, químicas e nucleares até um
ano antes da entrevista. Miller é honesta sobre como conseguiu a entrevista e
mostra as conseqüências de entrevistas desse tipo? Sim: "A entrevista com
Saeed foi conseguida por meio do Congresso Nacional Iraquiano, o principal
grupo de oposição do país, que procura derrubar Hussein. Caso comprovadas, as alegações de Saeed forneceriam
munição para as autoridades do governo Bush, que vêm usando o argumento
de que Hussein deveria ser banido do
poder em parte devido à sua recusa de
parar de fabricar armas de destruição
em massa, apesar de suas promessas
nesse sentido." A matéria faz alguma
ressalva a respeito das informações do
desertor? Sim: "As autoridades de inteligência americanas sempre tiveram
dúvidas sobre o que dizem esses desertores. Embora alguns tenham fornecido
informações 'valiosas' sobre essas atividades, dizem elas, muitos exageram
seus feitos e o que realmente sabem para conseguir asilo nos EUA e em outros
países." Miller faz alguma advertência
sobre o uso das informações que divulga? Sim: "É preciso agir com especial
cautela, declara um especialista em armamentos, à luz do atual debate interno entre as autoridades do governo
Bush sobre a conveniência ou não de
ampliar a guerra contra o terrorismo
para o Iraque."
Na reportagem "EUA dizem que Hussein intensifica esforços em busca de
peças para bomba atômica", publicada
em oito de setembro de 2002, Miller dá
uma informação: o governo Bush teria
descoberto que Saddam comprou tubos de alumínio indispensáveis para a
feitura da bomba atômica. Mas, mais
uma vez, Miller destaca que a informa-
ção serve aos propósitos dos que eram
a favor da invasão? Sim: "Embora não
haja qualquer indício de que o Iraque
esteja prestes a lançar sua bomba nuclear, sua procura por armamentos nucleares vem sendo citada por membros
linha-dura do governo Bush para sustentar o argumento de que os Estados
Unidos têm que agir já, antes que Hussein adquira armas nucleares." Miller
dá espaço para os céticos em relação
ao poderio nuclear iraquiano? Sim: "O
Iraque, dizem os críticos, ainda é altamente dependente de ajuda externa a
fim de levar avante seu programa nuclear. Washington, no parecer dos crí-
ticos, tem tempo de aplicar a diplomacia e deveria buscar o apoio das Na-
ções Unidas para obrigar o Sr. Hussein
a aceitar de volta os inspetores. Há unanimidade entre os críticos ao insistirem
que informações da inteligência sugerem que não há motivo para uma ação
militar apressada."
Em 13 de setembro de 2002, Miller
publicou a matéria "Casa Branca revela
lista de etapas para que o Iraque construa armamentos proibidos". Logo no
início, ela enfatiza que o documento
"procura reforçar os argumentos para
ação militar contra o Iraque". E, a seguir, dá espaço aos que desqualificam a
iniciativa: "Alguns parlamentares veteranos do Partido Democrata reclamaram que a CIA ainda não entregou nenhum relatório atualizado que documente os programas militares do Iraque. Afirmam também que algumas informações de inteligência fornecidas
pelo governo sobre as atividades armamentistas do Iraque são imprecisas e
desatualizadas."
Antes da invasão, Miller ainda publicou em 24 de janeiro de 2003 a reportagem "Desertores reforçam argumentos dos EUA contra o Iraque, afirmam
autoridades". Nela, Miller diz que o governo Bush já tem uma estratégia para
contornar o fato de que os inspetores
nada encontraram no Iraque até ali: produzir e divulgar um relatório baseado
em relatos de desertores. Miller faz alguma ressalva quanto ao valor do documento? Sim: "Entretanto, Washington
está muito dividida quanto ao valor das
informações provenientes de desertores. A Agência de Inteligência de Defesa
do Pentágono até agora foi a mais receptiva, afirmando que os desertores
são essenciais para se penetrar nas prá-
ticas de engodo comuns no Iraque. A
CIA por diversas vezes descarta o que
dizem os desertores e questiona sua
credibilidade, segundo autoridades do
governo." Ora, tal matéria foi exatamente um furo, pois foi isso o que aconteceu: Bush desprezou o relato dos inspetores e confiou no relato dos desertores. O resto é história.
Independentemente do comportamento pessoal de Miller, na análise das
matérias dela nada encontro que as desabone. Ela certamente estava convencida de que havia armas, mas deu as informações que existiam no momento e
as contextualizou, abrindo espaço a
quem as contradizia. Isso me leva a discutir uma noção de jornalismo que volta e meia vem à tona: o bom jornalismo
teria o condão de chegar à realidade de
uma maneira inequívoca. Se não existem armas de destruição em massa no
Iraque, o bom jornalismo jamais produzirá uma reportagem sugerindo o contrário. Seria como se jornalistas fossem
pitonisas. Nada mais falso. A verdade é
sempre construída num processo longo
de idas e vindas, numa marcha contí-
nua de reportagens, umas aperfeiçoando as outras, às vezes umas desmentindo as outras. Depois da invasão, com a
certeza de que não havia armas, Miller
passou a ser execrada. O maior fracasso do "Times", até aqui, porém, não foi
publicar as matérias de Miller, mas não
ter avançado no diagnóstico: Bush mentiu, os serviços secretos foram enganados, foi incompetência ou tudo junto?
Nisso, Miller não teve culpa: o pró-
prio jornal anunciou que a proibira de
continuar trabalhando no tema. Antes
da proibição, Miller procurou I. Lewis
Libby, chefe de gabinete do vice-presidente, numa tentativa, segundo ela, de
entender o fracasso dos serviços secretos. Em uma das conversas, surgiu a informação de que a mulher de um detrator de Bush trabalhava na CIA, informação que Miller jamais usou. Mas que
foi publicada por um jornalista conservador, dando origem ao inquérito para
apurar quem do governo revelara a
identidade de um agente secreto, um
crime federal. Miller se manteve calada,
para proteger a sua fonte. Foi presa. No
fim, ao ser liberada oficialmente por
sua fonte, consentiu em depor.
Nos editoriais, o "New York Times" a
apoiou, mas, no fim, os colegas de redação, na impossibilidade de dar um
xeque-mate em Bush, provando que ele
mentiu deliberadamente, deram um xeque-mate na colega.