A vitória de Hugo Chávez no referendo do dia 15 encheu de
alegria seus simpatizantes. Foi
um mar de declarações saudando a robustez da democracia venezuelana, a prova definitiva de que Chá-
vez é um democrata convicto, que o povo venezuelano o adora, essas coisas.
Para mim, a História recente da Venezuela deve ser vista como uma lição: todo
cuidado é pouco. Porque, se os democratas se descuidam, a democracia, que
não deve ter adjetivos, rapidamente pode se transformar numa democracia bolivariana. E isso lá é democracia?
Depois de passar dois anos na cadeia
por tentar tomar o poder, em 1992, com
um golpe de Estado, o tenente-coronel
Chávez abraçou a política, sem muito
êxito. Um ano antes das eleições de
1998, fundou o seu Movimento V Repú-
blica e concorreu à Presidência, sem
apoio de nenhuma das forças políticas
tradicionais. Mas encontrou o terreno
ideal, com um país envolto numa de
suas piores crises econômicas. O preço
do barril de petróleo, principal produto
do país, caíra em menos de um ano de
US$ 21 para US$ 8 (hoje está acima dos
US$ 40), o que provocou uma profunda
recessão e um desemprego batendo em
20%. Com um discurso messiânico de refundação da República, extinção total da
corrupção e reformas econômicas radicais para melhorar a vida dos mais pobres, Chávez ganhou a eleição.
Seus adeptos adoram afirmar: ganhou com 56,4% dos votos! Mas se esquecem de contar que a abstenção foi
de 40%, mesmo num país onde o voto é
obrigatório. Fazendo as contas, podese dizer que Chávez chegou à Presidência com 33,8% dos votos dos venezuelanos. A título de comparação, Fernando Henrique, em 1994, ganhou no primeiro turno com 54,3%, com uma abstenção de apenas 17,7%. Em 98, reelegeu-se também no primeiro turno com
53% dos votos e abstenção de 21%. E
nem por isso se sentiu no direito de
promover uma ruptura institucional,
como fez o venezuelano.
No poder, Chávez tratou de acalmar
o mercado: não reviu as privatizações
como ameaçara, manteve a política
cambial, promoveu um forte ajuste fiscal e prometeu reforçar a autonomia
funcional do Banco Central. Preferiu,
inteligentemente, atacar na política. O
Congresso, eleito apenas um mês antes
de Chávez, era de maioria oposicionista, dominado pelos tradicionais Ação
Democrática (social democrata) e Copei (democrata cristão). Chávez, por
decreto, convocou um plebiscito para
que o povo aceitasse ou não a convocação de uma Constituinte que teria
por objetivo implantar a "revolução pacífica bolivariana".
O Congresso tentou resistir, mas a
Suprema Corte, para agradar a Chá-
vez, não somente autorizou o plebiscito como deu ao Executivo o direito
de ditar as regras eleitorais, caso a
Constituinte fosse aprovada. Os fãs de
Chávez vivem dizendo que, no plebiscito, os venezuelanos aprovaram a
convocação da Constituinte por 70%
dos votos, mas, novamente, esquecem-se de dizer que a abstenção foi de
61%. A Constituinte, portanto, foi convocada com o apoio de apenas 27,3%
dos venezuelanos.
As regras para a eleição dos constituintes foram desenhadas de modo a beneficiar os chavistas. Antes, as eleições
para o Congresso eram feitas pelo sistema proporcional através de listas, com
os partidos políticos as encabeçando.
Cada partido tinha, no Congresso, o nú-
mero de assentos proporcional aos seus
votos. Pelas novas regras, os eleitores teriam de votar em nomes ou números,
sem menção a partidos. E mais: o método era "o ganhador leva tudo". Assim, os
adeptos de Chávez obtiveram 55% dos
votos, mas levaram 92% dos assentos: os
chavistas ganharam 121 das 131 cadeiras da Constituinte. Novamente, a abstenção foi altíssima, 46,3%: era a minoria
decidindo pela maioria.
E decidindo autoritariamente. A primeira medida dos constituintes foi inviabilizar o recém-eleito Congresso, que cometeu erros primários: para evitar o confronto, entrou em recesso. E, no recesso,
viu-se extinto pelos constituintes, que,
então, voltaram-se contra o Judiciário. De
saída, cerca de um terço do juízes foi cassado, sem direito à defesa plena. Sem o
Congresso, com o Poder Judiciário imobilizado, Chávez fez a festa. Aprovou a
Constituição que quis, dando-se poderes
excepcionais. É verdade que ele se submeteu a nova eleição e venceu, com 59%
dos votos, mas, novamente, com uma
abstenção recorde de 54%, ou seja, foi,
mais uma vez, eleito pela minoria.
O novo Congresso, eleito aos moldes
chavistas, concedeu ao presidente o poder de legislar por decretos por um ano.
No último dia do prazo, sem consultar nenhum dos segmentos da sociedade,
anunciou 49 novas leis. Foi o estopim da
crise. Chávez esqueceu-se da moderação
inicial no campo econômico e pôs em
marcha o seu programa radical de reformas. Quando a oposição acordou, já era
tarde. Tentou a via golpista, e se igualou
ao Chávez de 92. Tentou a via eleitoral,
mas usando os instrumentos da Constituição chavista, e, de certa forma, igualou-se também a ele ao chancelar um instrumento que ele próprio criou.
A lição? Ou se luta, desde o início, ao
mínimo sinal de autoritarismo, pela
manutenção da democracia sem adjetivos ou, depois, a democracia adjetivada cria raízes que podem levar anos
para desaparecer.