"A democracia de Chávez", O Globo, 24/08/2004 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"A democracia de Chávez", O Globo, 24/08/2004

A vitória de Hugo Chávez no referendo do dia 15 encheu de alegria seus simpatizantes. Foi um mar de declarações saudando a robustez da democracia venezuelana, a prova definitiva de que Chá- vez é um democrata convicto, que o povo venezuelano o adora, essas coisas. Para mim, a História recente da Venezuela deve ser vista como uma lição: todo cuidado é pouco. Porque, se os democratas se descuidam, a democracia, que não deve ter adjetivos, rapidamente pode se transformar numa democracia bolivariana. E isso lá é democracia?

Depois de passar dois anos na cadeia por tentar tomar o poder, em 1992, com um golpe de Estado, o tenente-coronel Chávez abraçou a política, sem muito êxito. Um ano antes das eleições de 1998, fundou o seu Movimento V Repú- blica e concorreu à Presidência, sem apoio de nenhuma das forças políticas tradicionais. Mas encontrou o terreno ideal, com um país envolto numa de suas piores crises econômicas. O preço do barril de petróleo, principal produto do país, caíra em menos de um ano de US$ 21 para US$ 8 (hoje está acima dos US$ 40), o que provocou uma profunda recessão e um desemprego batendo em 20%. Com um discurso messiânico de refundação da República, extinção total da corrupção e reformas econômicas radicais para melhorar a vida dos mais pobres, Chávez ganhou a eleição.

Seus adeptos adoram afirmar: ganhou com 56,4% dos votos! Mas se esquecem de contar que a abstenção foi de 40%, mesmo num país onde o voto é obrigatório. Fazendo as contas, podese dizer que Chávez chegou à Presidência com 33,8% dos votos dos venezuelanos. A título de comparação, Fernando Henrique, em 1994, ganhou no primeiro turno com 54,3%, com uma abstenção de apenas 17,7%. Em 98, reelegeu-se também no primeiro turno com 53% dos votos e abstenção de 21%. E nem por isso se sentiu no direito de promover uma ruptura institucional, como fez o venezuelano.

No poder, Chávez tratou de acalmar o mercado: não reviu as privatizações como ameaçara, manteve a política cambial, promoveu um forte ajuste fiscal e prometeu reforçar a autonomia funcional do Banco Central. Preferiu, inteligentemente, atacar na política. O Congresso, eleito apenas um mês antes de Chávez, era de maioria oposicionista, dominado pelos tradicionais Ação Democrática (social democrata) e Copei (democrata cristão). Chávez, por decreto, convocou um plebiscito para que o povo aceitasse ou não a convocação de uma Constituinte que teria por objetivo implantar a "revolução pacífica bolivariana".

O Congresso tentou resistir, mas a Suprema Corte, para agradar a Chá- vez, não somente autorizou o plebiscito como deu ao Executivo o direito de ditar as regras eleitorais, caso a Constituinte fosse aprovada. Os fãs de Chávez vivem dizendo que, no plebiscito, os venezuelanos aprovaram a convocação da Constituinte por 70% dos votos, mas, novamente, esquecem-se de dizer que a abstenção foi de 61%. A Constituinte, portanto, foi convocada com o apoio de apenas 27,3% dos venezuelanos.

As regras para a eleição dos constituintes foram desenhadas de modo a beneficiar os chavistas. Antes, as eleições para o Congresso eram feitas pelo sistema proporcional através de listas, com os partidos políticos as encabeçando. Cada partido tinha, no Congresso, o nú- mero de assentos proporcional aos seus votos. Pelas novas regras, os eleitores teriam de votar em nomes ou números, sem menção a partidos. E mais: o método era "o ganhador leva tudo". Assim, os adeptos de Chávez obtiveram 55% dos votos, mas levaram 92% dos assentos: os chavistas ganharam 121 das 131 cadeiras da Constituinte. Novamente, a abstenção foi altíssima, 46,3%: era a minoria decidindo pela maioria.

E decidindo autoritariamente. A primeira medida dos constituintes foi inviabilizar o recém-eleito Congresso, que cometeu erros primários: para evitar o confronto, entrou em recesso. E, no recesso, viu-se extinto pelos constituintes, que, então, voltaram-se contra o Judiciário. De saída, cerca de um terço do juízes foi cassado, sem direito à defesa plena. Sem o Congresso, com o Poder Judiciário imobilizado, Chávez fez a festa. Aprovou a Constituição que quis, dando-se poderes excepcionais. É verdade que ele se submeteu a nova eleição e venceu, com 59% dos votos, mas, novamente, com uma abstenção recorde de 54%, ou seja, foi, mais uma vez, eleito pela minoria.

O novo Congresso, eleito aos moldes chavistas, concedeu ao presidente o poder de legislar por decretos por um ano. No último dia do prazo, sem consultar nenhum dos segmentos da sociedade, anunciou 49 novas leis. Foi o estopim da crise. Chávez esqueceu-se da moderação inicial no campo econômico e pôs em marcha o seu programa radical de reformas. Quando a oposição acordou, já era tarde. Tentou a via golpista, e se igualou ao Chávez de 92. Tentou a via eleitoral, mas usando os instrumentos da Constituição chavista, e, de certa forma, igualou-se também a ele ao chancelar um instrumento que ele próprio criou.

A lição? Ou se luta, desde o início, ao mínimo sinal de autoritarismo, pela manutenção da democracia sem adjetivos ou, depois, a democracia adjetivada cria raízes que podem levar anos para desaparecer.