Entre os críticos dos EUA, virou
rotina debochar do seu anunciado apoio à instalação de regimes
democráticos no mundo. Diante
da vitória do grupo terrorista Hamas nas
eleições palestinas, da radicalização do
Irã depois da vitória de Mahmoud Ahmadinejad e do que ocorre hoje na Venezuela, com Chávez, e na Bolívia, com Evo
Morales, é comum ouvirmos que o feitiço virou contra o feiticeiro: "Os EUA falam em democracia, mas, quando o resultado das urnas lhes desagrada, torcem o nariz", dizem. Quando Condoleeza
Rice diz que uma democracia não se resume a eleições, fazem piada. E, no entanto, Condoleeza está com razão.
Certamente, não existe democracia
sem eleições, mas o alicerce de todo regime democrático é a crença de que a liberdade é um valor absoluto, inquestionável, direito inalienável de todos os homens. E ela vem sempre desacompanhada de adjetivos: não pode haver uma liberdade burguesa, uma liberdade socialista, uma liberdade proletária, uma liberdade mais ou menos. Liberdade, enfim, é
o direito mais básico que uma democracia tem de garantir. Portanto, democracia alguma no mundo pode admitir movimentos políticos cujo programa preveja o cerceamento da liberdade. Trata-se
de um princípio básico de autodefesa.
É por isso que em democracias consolidadas é impensável admitir que partidos com propostas totalitárias participem de eleições. Na Alemanha, apenas
para citar um exemplo, o partido nazista,
seus símbolos e o livro-programa de Hitler, "Minha luta", são proibidos. Também no Reino Unido, nos EUA, na França
etc., não podem avançar partidos que
prevejam a destruição dos princípios democráticos, que defendam o fechamento
do Congresso, a mudança radical no relacionamento entre os poderes, o redesenho das leis eleitorais de modo a perpetuar um partido no poder.
Eleição nenhuma dá direito a que a
liberdade seja restringida. Porque as
gerações atuais, mesmo dispostas a
abrir mão da liberdade, não podem tirar esse direito das gerações futuras.
Esse é o princípio que rege
as democracias.
O que explica, então, Chávez, Hamas e movimentos
semelhantes é o pouco valor
dado ao conceito de liberdade em grande parte dos países. A rigor, o que se tem na
Autoridade Nacional Palestina não é uma democracia,
mas apenas o povo votando.
O Hamas é porta-voz de uma
ideologia religiosa radical,
que prevê a instalação de
uma teocracia, em que valerá não a vontade do povo, mas a vontade
de Deus, obviamente interpretada por
um grupo de religiosos pretensamente
iluminados. Num regime de fato democrático, sua participação num processo
eleitoral seria indevida, porque seu programa de governo é incompatível com a
democracia. Não há, portanto, nenhuma
incoerência em apoiar a democracia e repudiar a vitória do Hamas.
Chávez é a mesma coisa. Chegou ao
poder numa eleição democrática, em
1998, mas os passos que tomou dali em
diante foram ilegítimos. Eleito com 56% dos votos, mas numa eleição cuja
abstenção foi de 40% (à época, o voto
era obrigatório), Chávez encontrou um
Congresso oposicionista, eleito democraticamente apenas um mês antes. O
que fez? Tratou de planejar a eliminação daquele Congresso, convocando,
ilegalmente, um plebiscito para autorizá-lo a convocar uma Constituinte. O
Congresso tentou resistir, mas uma Suprema Corte titubeante, para agradar a
Chávez, acabou não somente autorizando o plebiscito, mas dando também ao Executivo o direito
de ditar as regras eleitorais, caso a Constituinte
fosse aprovada. Com regras feitas de molde a lhe
garantir a vitória, Chávez
teve a sua Constituinte, e,
de lá para cá, sempre com
índices de abstenção altíssimos, algumas vezes superiores a 60%, e com regras sempre feitas para lhe
beneficiar, foi "vencendo"
eleições e mudando o país
a seu bel-prazer. Isso não é
democracia, mas um governo plebiscitário, que cerceou a liberdade de imprensa e viciou o processo eleitoral.
O Irã é outro exemplo. Muitos justificam as atitudes do presidente Mahmoud Ahmadinejad, porque ele foi eleito "democraticamente", mas se esquecem de que ali nada é democrático, já
que o Irã é uma teocracia. Um grupo de
religiosos que comanda o país com
mão-de-ferro escolhe os candidatos que
podem disputar uma eleição. Assim,
fosse quem fosse o "eleito", o programa
não seria dele, mas dos ayatolás. Caso o "eleito" se desvie, será "legitimamente"
deposto. Se ali não há liberdade, a democracia é apenas uma aparência.
De Evo Morales não se pode esperar
boas coisas. Uma Constituinte já está a
caminho, e ele já se movimenta para tê-
la sobre controle e moldar o país segundo os seus planos. A liberdade, ferida,
tornará aquele país um simulacro de democracia.
Por tudo isso, é bobagem dizer que os
EUA querem uma democracia desde que
os eleitos façam o que eles querem. Não
se trata disso. Em novembro de 2003,
Bush fez um discurso histórico: "Sessenta anos com o Ocidente relevando a falta
de liberdade no Oriente Médio, e se
acostumando a ela, não fizeram nada para nos proteger. No longo prazo, a estabilidade não se consegue à custa da liberdade." Desde essa autocrítica, o que
os EUA parecem querer para os outros é
o que há mais de 200 anos praticam em
casa: uma democracia em que ninguém
tenha o direito de disputar o direito de
corrompê-la. Assim como o nazismo é
proscrito na Alemanha, é absolutamente
coerente com propósitos democráticos
imaginar democracias no Oriente Médio
que sejam vacinadas contra projetos
teocráticos. Isso é autodefesa.
Nós, que vivemos num regime democrático há apenas poucos anos, temos de
ter isso muito em mente. É preciso que
todos entendamos as regras do jogo, e
que o Congresso, de um lado, e a Justiça,
de outro, estejam sempre atentos para
não deixar que algum aventureiro queira
usar a democracia para restringi-la.