Quando soube que o biólogo Richard Dawkins tinha escrito
"Deus, um delírio", fiquei intrigado: então um cientista conseguiu a prova de que Deus
não existe? Mas, na página 80, acontece
o óbvio. Numa gradação de um a sete,
que vai da crença absoluta na existência de Deus até a certeza absoluta de
que Deus não existe, Dawkins admite
que está na sexta posição ("tendendo
para a sétima"): "Probabilidade muito
baixa [de que Deus exista], mas que
não chega a ser zero. Ateu de facto.
'Não tenho como saber com certeza,
mas acho que Deus é muito improvável
e levo minha vida na predisposição de
que ele não está lá.'"
Então por que o delírio do título?
Devia ser "quase um delírio" ou "muito provavelmente um delírio".
O que leva um cientista com a reputação de um Dawkins a escrever um livro cuja natureza está fora do âmbito
da ciência? Ora, a crença de que "a existência ou a inexistência de Deus é um
fato científico sobre o universo, passível de ser descoberto por princípio, se
não na prática". Dá para levar a sério?
Para Dawkins, dá. Mas, sabedor de que
isso não é verdade, ele sai pela tangente. Diz que o fato de que não se pode
comprovar a existência de alguma coisa
não coloca a existência e a inexistência
dela em pé de igualdade: "Mesmo que a
existência de Deus jamais seja comprovada ou descartada com certeza, as evidências existentes e o raciocínio podem
criar uma estimativa de probabilidade
que se afasta dos 50%." De novo, dá para levar a sério? Dawkins leva.
E se esborracha, às vezes constrangedoramente.
No capítulo 3, por exemplo, o autor
se dedica a questionar os clássicos argumentos de São Tomás de Aquino e
Santo Anselmo de Canterbury que "provariam" a existência de Deus. O que ele
não percebe, porém, é que ao refutar argumentos de que Deus existe não se
atinge o objetivo de provar que Deus
não existe. É um livro capenga. Fala de
Deus, mas afirma que não precisou ler
outros teólogos, diz que a origem da vida deve ser estudada pela química, e se
desculpa por não ser químico, levanta a
hipótese ingênua de que Deus pode ser
o equivalente aos amigos imaginários
da infância, e se pergunta se a psicologia já testou essa hipótese.
O que mais incomoda é que Dawkins
trata o crente mais "sofisticado" como
se fosse, em essência, igual aos mais caricatos tele-evangelistas ou aos talibãs
ultra-radicais. Para quem não é nem
uma coisa nem outra, o livro se torna
enfadonho. Dawkins ridiculariza os fundamentalistas porque eles têm uma leitura literal de suas escrituras (se a Bí-
blia diz que Eva foi feita da costela de
Adão, isso é verdade e ponto). Mas,
quando ridiculariza as religiões abraâmicas, o que faz Dawkins senão fazer
uma leitura ultraliteral da Bíblia e, a partir dela, criticar o quanto as escrituras
são implausíveis e contraditórias? Neste ponto, não há como negar que se trata de um diálogo entre fundamentalistas. Ele nega: "Os teólogos, irritados,
protestarão dizendo que não se interpreta mais o livro do Gênesis em termos literais. Mas é exatamente isso que
estou dizendo! Escolhemos em que pedacinhos das Escrituras devemos acreditar, e quais pedacinhos descartar, por
símbolos ou alegorias." Mas de onde
Dawkins tirou a conclusão de que símbolos e alegorias devem ser descartados? Para muitos, acreditar que a história de Adão e Eva é uma alegoria da
criação divina do homem não é descartar a crença de que a Humanidade proveio de Deus.
Ao confundir todo crente com os
criacionistas, Dawkins passa páginas
e páginas tentando provar o que não
precisa mais de prova: que a Teoria
da Evolução de Darwin dá conta de
como as espécies, entre elas o homem, chegaram a ser o que são. Para
muitos que crêem, a Evolução não é
incompatível com a crença em Deus.
Teólogos católicos, por exemplo, afirmam que é plenamente aceitável a
possibilidade de que o Criador tenha
usado a evolução como um instrumento. A dificuldade não está na Evolução, mas na origem da vida. E esta
dificuldade é, até aqui, intransponível.
"A origem da vida só teve de acontecer uma vez. Portanto, podemos permitir que ela tenha sido um evento altamente improvável, muitas ordens de
magnitude mais improvável que a maioria das pessoas imagina", admite, sem,
porém, quantificar essa probabilidade.
Os biólogos fizeram as contas. Para que
a vida surgisse na Terra, foi preciso que,
ao longo de bilhões de anos, um milhar
de enzimas se aproximasse umas das
outras, até que ocorresse a única ordenação entre elas capaz de gerar uma cé-
lula viva, uma probabilidade da ordem
de 10 seguido de mil zeros contra um.
Não, não se trata de uma chance em um
trilhão, mas de uma chance contra 10
seguido de mil zeros, uma possibilidade
praticamente nula.
Para desmerecer esses números,
Dawkins cita outros. Pede que nós "suponhamos" que a vida seja algo tão improvável que só aconteça em apenas
um entre 1 bilhão de planetas. Ele, então, conclui: como se estima que haja
na nossa galáxia entre um bilhão e 30
bilhões de planetas, e como a estimativa é que haja 100 bilhões de galáxias,
a vida teria surgido, ainda sim, em um
bilhão de planetas. Note o truque: o número de planetas e galáxias é o referendado pela física, mas a afirmação de
que a vida só acontece em apenas um
entre um bilhão de planetas é apenas
uma suposição dele, uma entre muitas.
Dawkins esquece de relembrar isso ao
leitor e, assim, a vida, mesmo raríssima, ganha um número vistoso, mas, até
aqui, fantasioso: a vida existiria em um
bilhão de planetas.
No livro, Dawkins, um biólogo a
quem sempre admirei, repete quase integralmente conceitos que já apresentou em trabalhos anteriores ("O gene
egoísta", "O relojoeiro cego"), em que
procurou defender a idéia de que a
ciência prescinde de Deus para explicar os fenômenos naturais. Isso é uma
coisa. Outra, diversa, é tentar "provar"
cientificamente que Deus não existe. O
resultado não é ciência, não é teologia,
é um somatório de argumentos que
não levam a lugar algum.