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oram 15 dias muito importantes para o Brasil. Não porque o
STF acolheu a denúncia do Ministério Público contra os 40
acusados do mensalão. Mas porque o
fez diante do povo, às luzes das câmaras de televisão, de forma técnica, independente, não se importando com o
alarido normal de uma democracia.
Para quem, erradamente, acreditava
que o Supremo, do alto de seus 116
anos, agiria com menos independência
porque seis de seus membros foram
indicados pelo presidente Lula, foi
uma lição para não ser esquecida. Outra prova de vitalidade de nossas instituições veio do presidente Lula: em
sua sétima indicação ao Supremo, optou por um juiz tido como conservador, mais uma vez temperando suas
escolhas de modo a que o tribunal tenha uma composição equilibrada: todos com grande saber jurídico, altamente técnicos, mas com visões de
mundo que espelhem as que existem
aqui do lado de fora.
Num continente em que juízes têm
de julgar e depois contar com a polícia
para não levar pedradas, apenas porque contrariam maiorias parlamentares momentâneas (como aconteceu no
Equador) e em que Constituintes manietadas substituem sumariamente juí-
zes da mais alta corte por simpatizantes do presidente (como aconteceu na
Venezuela), os dois acontecimentos da
semana no Brasil colocam o país definitivamente vários degraus acima no
que diz respeito à democracia.
Foram dias felizes também para a
grande imprensa. Primeiro, porque a
aceitação da denúncia contra os 40
envolvidos no mensalão deitou por
terra toda aquela gritaria dos setores
antidemocráticos e autoritários segundo os quais o noticiário sobre o
escândalo era uma construção golpista da grande mídia. O engraçado é
ver, hoje, esses mesmos setores, em
manobras contorcionistas, lamentando que não tenham conseguido
pôr a mídia sobre controle. Eles fingem acreditar que é a grande imprensa que cria os fatos que os embara-
çam, quando, na verdade, ela apenas
os noticia de maneira independente.
O próprio julgamento no Supremo
foi um exemplo. A grande imprensa
(O GLOBO, acompanhado pelos demais) registrou fotograficamente e
divulgou diálogos entre dois ministros por meio do computador, durante o julgamento, e isso foi visto pelos
setores antidemocráticos e autoritá-
rios como uma forma de a mídia
pressionar o Supremo. Mas foi a mesma grande imprensa ("Folha de S.
Paulo", acompanhada pelos demais)
que ouviu uma conversa telefônica
em que um ministro do tribunal dizia
que o STF julgara com a faca no pescoço, uma interpretação que, para
um dos acusados, seria prova de que
o julgamento estava sob suspeição.
Uma no cravo, uma na ferradura?
Nada disso, era apenas a grande imprensa trabalhando com independência, sem se perguntar sobre a quem o
fato vai beneficiar, a quem o fato vai
desagradar. As duas reportagens causaram, sem dúvida, enormes dissabores a ministros do Supremo, que, em
última instância, julgam os atos da
própria grande imprensa. Mas nem a
grande imprensa se acovardou diante
disso, nem os ministros tiveram ímpetos de vingança, de revanche, porque,
no atual estágio de nossa democracia,
entendem perfeitamente que é fundamental que o jornalismo se produza
num ambiente livre. Não é controle algum que evita excessos, mas a pró-
pria liberdade que põe tudo nos trilhos. No fim das contas, ficou bastante claro que os diálogos dos ministros
eram uma troca de impressões legítimas. E que a faca no pescoço, na visão do ministro que usou a metáfora,
era um desabafo diante da enorme
responsabilidade do tribunal.
Foram 15 dias especialmente felizes
para mim. Pois provaram que os setores antidemocráticos e autoritários
que criticaram o meu último artigo cabiam exatamente no rótulo que eu
lhes dei. Porque bastou eu escrever
que a grande imprensa, no seu trabalho cotidiano, testa hipóteses, para
que eles assustadoramente rebatessem essa idéia com fúria e muito deboche. Para eles, o que o jornalismo
deve fazer é descrever os fatos e ponto, o sonho de todo autocrata: "Caiu
um avião, matando 199 pessoas." Causas? Motivos? Culpados? Que os leitores, ouvintes e espectadores aguardem os dez meses que duram uma investigação oficial desse tipo. Não, nada disso: o papel da grande imprensa é
ir atrás das possíveis causas, testando
todas as hipóteses: caos aéreo, pista
escorregadia, defeito no aparelho, falha humana. Como na linguagem escrita uma palavra vem depois da outra,
os críticos entenderam que eu disse
que as hipóteses foram examinadas
consecutivamente, quando, é claro, tudo foi feito simultaneamente. A ponto
de o defeito no reverso ter sido revelado já no segundo dia da cobertura,
com grande ênfase, sem que nenhuma
outra hipótese tenha sido abandonada. A ânsia por controle é tão grande
que apelidaram, debochando, esse jornalismo como "o jornalismo que testa
hipóteses". Como se existisse outro.
O que reconforta é que esses setores antidemocráticos e autoritá-
rios não praticam o jornalismo, mas
a propaganda, uma atividade nobre,
quando feita explicitamente. Não é o
caso deles, mas isso não é problema
meu. É deles.
Enfim, 15 dias como devem ser todos os nossos dias. Para que nos
mantenhamos entre as maiores, e
efetivas, democracias do mundo.