A pesquisa da UnB sobre a
presença de brancos, pardos e pretos nas universidades federais foi motivo de
muita discussão. Pena que o MEC,
contrariado com os resultados, tenha
cancelado a sua divulgação oficial.
De todo modo, a imprensa cumpriu o
seu objetivo e publicou o seu conteúdo. Em linhas gerais, os brancos são
59,4% dos estudantes das federais, os
pretos, 5,9% e os pardos, 28,3%. Na
população, os brancos são 52,1%, os
pretos 5,9% e os pardos 41,4%. São
números próximos mas não totalmente coincidentes. Não importa, a
lição que fica é que cotas são um remédio excessivo, que pode trazer ao
país o que não conhecemos, o ódio
racial. Diante desses novos números,
não vale o risco.
A pesquisa da UnB em nada desmente o que qualquer um de nós vê ao entrar nas federais: uma maioria esmagadora de pessoas de pele mais clara, já
que praticamente 60% dos alunos se
declararam brancos. Mas se vêem também pessoas mais morenas, outras
bem morenas e uma pequena minoria
de pretos, 5,9% segundo a pesquisa.
Quem vê só brancos tem de pensar no
porquê. Não conheço quem só veja negros, nem mesmo a pesquisa diz isso.
Também ninguém afirmou que todos os
problemas acabaram: muito provavelmente a presença de pretos e pardos é
maior nos cursos menos disputados (a
pesquisa não fez esse detalhamento).
Isso decorre, com certeza, da pobreza:
por serem pobres, os pretos e os pardos cursaram piores escolas e, portanto, não conseguiram entrar para as carreiras em que a disputa é mais acirrada.
A pesquisa do Inep que o MEC divulgou
para contraditar a pesquisa da UnB só
corrobora essa tese. Ao incluir as universidades privadas, certamente pouco
freqüentadas por pobres porque são
pagas, a quantidade de brancos aumenta e a de pretos e pardos diminui: 72,9%
são brancos.
Seja como for, não vale dizer que a
pesquisa é ruim porque contraria o visível e o senso comum. Porque a função
de uma pesquisa, a função da ciência, é
justamente revelar o que está por trás
do visível e contrariar as crenças e os
preconceitos mais arraigados. O senso
comum, sabemos todos, é pouco sábio.
Não fosse assim, até hoje estaríamos
convencidos de que o Sol gira em torno
da Terra, pois é dessa maneira que o
percebemos diariamente. Houve também quem dissesse que há estatísticas
boas e más, quando na verdade os nú-
meros são sempre frios e objetivos.
As interpretações que se fazem deles
é que podem ser corretas ou incorretas.
Eu nunca discordei dos números de
pesquisas de entidades sérias, não ousaria também entrar em luta com os nú-
meros do IBGE, por exemplo. Mas tenho discordado muitas vezes das aná-
lises feitas a partir deles. É assim que
um país se move: a partir do debate de
idéias, do confronto de idéias. Ninguém
é dono da verdade, ninguém tem o segredo da vida, ninguém tem o monopó-
lio da virtude. Eu vejo sempre sinceridade naqueles que discordam de mim.
Mas há quem veja sinceridade apenas
em seus pares. A pesquisa da UnB foi
feita segundo os mais altos padrões técnicos, como todos os que a leram podem constatar. Podem-se interpretar os
números de muitas maneiras, mas não
se deve desqualificar a pesquisa e os
pesquisadores apenas porque os resultados surpreenderam alguns.
O debate em torno de raças no Brasil
sempre foi intenso. Deixando de lado
todo o debate entre escravocratas e
abolicionistas, o século XX foi todo ele
permeado por essa discussão. Nas primeiras décadas do século passado, o
pensamento majoritário nas ciências
sociais era racista. Mas até ele reconhecia que o Brasil era fruto da miscigena-
ção. O racismo era decorrente justamente dessa constatação: para que o
país progredisse, era preciso, diziam os
sociólogos, que o país se embranquecesse, diminuindo a porção negra de
nosso povo. Foi Gilberto Freyre quem
se contrapôs a um pensamento tão abjeto como este. Jamais defendeu a tese
de que o Brasil era uma democracia racial: "Casa grande e senzala" dedica pá-
ginas e mais páginas ao relato das atrocidades que se fizeram contra os escravos. No debate com o pensamento majoritário de então, o que Freyre fez foi
resgatar a importância do negro para a
construção de nossa identidade nacional, para a construção da nossa cultura,
do nosso jeito de pensar e agir.
Ele enalteceu a figura do negro,
dando a ela sua real dimensão. A nossa miscigenação, concluímos depois
de ler Freyre, não é a nossa chaga,
mas a nossa principal virtude. É somente a partir da década de cinqüenta que uma certa sociologia vai abandonando esse tipo de raciocínio para
começar a dividir o Brasil entre brancos e não-brancos, um pulo para chegar aos que hoje dividem o Brasil entre brancos e negros, afirmando que
negro é todo aquele que não é branco. Adeus morenos, cafusos, mamelucos, caboclos. Eu fico até hoje desconfortável de usar a nomenclatura
"pretos e pardos", mas me rendo a
ela porque todas as estatísticas se referem hoje a negros como sendo a soma dos dois grupos, desconsiderando o fato de que "pardo" abarca todo
um dégradé de cores diferentes.
Como se vê, o debate sempre existiu
e não somente nas ciências sociais.
Uma pesquisa superficial em nossos
jornais, nos últimos trinta anos, mostrará que o tema jamais saiu de pauta. Hoje, nós que discutimos o assunto devemos ter a consciência de que não inauguramos nada, não inventamos nada.
Somos parte de uma longa engrenagem,
com a especificidade de que, hoje, todos lutam para que todos tenham igualdade de oportunidades. É um avanço.
Uns acreditam que chegarão a isso com
cotas e com políticas de discriminação
racial positiva. Outros, como eu, acreditam que usar a lógica do racismo —
"os homens são diferentes segundo a
raça" — para combatê-lo é contraproducente e só pode agravá-lo. Nós acreditamos que a desigualdade entre negros e brancos é fruto essencialmente
da pobreza. Combatê-la de maneira obsessiva e dar a pobres de todas as cores
uma educação de qualidade é a única
forma de dar chances iguais a todos.
Porque, no Brasil, não há barreiras legais contra etnias ou grupos. E porque,
mesmo o racismo existindo aqui como
em todo lugar, o traço dominante de
nosso povo é a convivência pacífica, intensa e harmoniosa entre pessoas de
todas as cores. Nossa miscigenação é a
maior prova disso. Abrir mão desse capital seria um desastre.