Nós jornalistas temos certeza de
que devemos vender certezas, na
suposição de que o público, atordoado por um mundo confuso e
caótico, não quer dúvidas, que já
tem de sobra; quer o conforto das
explicações cabais, um mundo organizado. A tarefa que nos impomos
é realizável quando se trata de uma
reunião ministerial, por exemplo.
Uma boa apuração, feita com isen-
ção e ouvindo o maior número de
fontes, pode chegar a um resultado
bastante próximo da verdade. O
mesmo pode se dar na investigação
das causas de uma catástrofe ambiental. Ou de um crime. Ou de uma
ação desastrada da polícia. À medida que os eventos ganham em
dimensão e complexidade, porém, é
mais difícil que se sirva ao público
um prato feito e arrumado. E, nos
grandes eventos, a tendência é organizar os fatos fazendo-se previsões como se o dom da adivinhação
existisse. Como não existe, a chances de erro são grandes. E, no entanto, é isso o que temos visto nessa
guerra do Iraque (exceções sempre
existem): na maior parte das vezes,
interpretações equivocadas servidas como se fossem verdades absolutas. Fantasias no lugar de fatos.
O mesmo fenômeno já tinha acontecido na guerra contra o Afeganistão. A mesma imprensa que produziu o fenômeno já se esqueceu
dele, mas vale a pena relembrar. Era
consenso entre os analistas que os
EUA estavam se metendo numa confusão sem tamanho, de onde nada
de bom poderia resultar. Diziam que
os afegãos eram guerreiros ferozes e
que, ao longo de sua história, tinham
derrotado dois grandes impérios.
Em 1842, uma tropa britânica de 17
mil homens foi dizimada, dela restando apenas um homem para contar o massacre: o Dr. Brydon, cirurgião do exército inglês. Nos anos
80, os poderosos soviéticos tinham
também levado uma surra dos bravos afegãos, que, montados em seus
cavalos, destruíram os tanques soviéticos (e tome a citar a filmografia
de Rambo para lembrar que, naquele tempo, os EUA apoiaram os
afegãos). Com base nesses dados
históricos a previsão era que o conflito com os americanos seria longo,
penoso, com a perda de muitas vidas. Lembro-me até de um analista
de guerra dizendo que o Afeganistão
tinha já mostrado aos britânicos e
soviéticos que o país costuma ser
uma geleira no inverno e um inferno
no verão.
A guerra começou e todas as
análises indicavam que a guerra
seria longa. Para isso, contribuíam
as entrevistas diárias do embaixador do Talibã no Paquistão (sempre
acompanhado daquele companheiro que tinha um gancho no lugar da
mão e um tapa-olho), que desmentiam os avanços e vitórias da aliança
anglo-americana. De repente, menos de dois meses depois, o embaixador fugiu do Paquistão num
jipe branco e Cabul caiu. Está certo
que nunca mais nem Osama Bin
Laden nem o mulá Omar foram
vistos, mas eu não li nenhum artigo
de autocrítica, em nenhum jornal,
reconhecendo que os prognósticos
estavam errados.
Agora, a história voltou a se repetir. O noticiário seguiu um ritmo
esquizofrênico, mas sempre cheio
de certezas. Como tudo aconteceu
há pouco tempo, os leitores hão de
se recordar. O primeiro movimento
da imprensa dizia basicamente três
coisas: a guerra seria curtíssima, em
três dias tudo estaria resolvido; o
Iraque é um país artificial, dividido
em três etnias (aquela coisa de
curdos ao norte, sunitas no centro e
xiitas ao sul), e que, portanto, se
fragmentaria sem o pulso forte de
Saddam; os xiitas do sul receberiam
as tropas invasoras com flores nas
mãos e ajudariam a depor Saddam,
com um golpe de Estado. Como o
tempo era muito curto, a profecia
seria facilmente confirmada ou desmentida. E, para desgosto dos analistas, os prognósticos não se realizaram. Não houve, porém, nenhum
mea culpa, pois as análises, antes
assumidas como originais, passaram a ser atribuídas ao governo
americano. Assim, teve início uma
segunda onda na imprensa: a guerra
seria muito mais longa do que o
previsto; a coalizão anglo-americana enfrentaria resistência feroz no
sul; os iraquianos se uniriam em
torno de Saddam para defender a
sua terra; os xiitas do sul não mandariam mais flores; a batalha por
Bagdá seria duríssima, talvez uma
nova Stalingrado; e, finalmente,
Rumsfeld teria sido um idiota por
não ter mandado uma tropa maior
para o Iraque, acreditando apenas
na supremacia tecnológica americana (foram muitos artigos discutindo os erros dos americanos e
freqüentes as manchetes como
"Rumsfeld está acuado").
Hoje, três semanas depois de iniciada a guerra, vive-se o início de
uma terceira fase. Como Bagdá já
está nas mãos dos americanos, as
críticas aos erros serão esquecidas
e pouco a pouco será como se
sempre se soubesse que a guerra
seria de fato curta. Mas, como as
neuroses são de tratamento difícil,
logo terá início uma quarta fase. Ela
vai girar em torno de três pontos:
dirão que a resistência internacional ao papel preponderante dos
EUA na reconstrução do Iraque será
um obstáculo de grande envergadura aos planos de Bush, as teses de
que o Iraque se fragmentará voltarão à tona e será uma certeza o
recrudescimento do terrorismo. E,
se nada disso acontecer, não haverá
problema: novas teses ocuparão o
lugar das velhas.
Em casos de grande complexidade, como uma guerra, em que a
própria informação, divulgada ou
omitida pelas fontes, é uma arma,
mais legítimo seria apresentar, com
humildade, múltiplos cenários e
poucas certezas. O público sairia
ganhando.