Dois dias depois das eleições
americanas em 2004, publiquei
um artigo cujo título era: "Foi a
guerra, idiota". Era uma resposta à quase unanimidade que se formara
para justificar a vitória de Bush: a ênfase
nos valores morais, a América profunda,
o votos dos renascidos em Cristo teriam
determinado a reeleição. O título era uma
citação a James Carville, marqueteiro de
Clinton, que cunhou a frase "é a economia, idiota" ao perceber que, apesar da vitória de Bush pai no Iraque, o mau desempenho da economia teria um peso fundamental na eleição de 1992. No meu artigo,
eu dizia que, em 2004, o determinante era
a guerra, o desejo que os americanos tinham de que o conflito no Iraque e a luta
contra o terror chegassem a bom termo.
Dois anos depois, eu não mudei de opinião, mas os outros, sim. Agora, para
eles, não foram os valores morais, mas a
guerra, o determinante nesta eleição. Estão certos agora e errados antes. Se em
2004, o conservadorismo religioso tivesse sido o fator fundamental, por que teria
deixado de ser hoje? Afinal, a América
profunda continua a mesma, acreditando
nas mesmas coisas, e certamente, de
uma hora para outra, não viu nos democratas os seus defensores. A América profunda está onde sempre esteve, porque,
hoje como em 2004, não foi ela, mas a
guerra, o que pesou na eleição.
Em 2004, a avaliação de que o conservadorismo religioso tinha sido o xis da
questão decorreu de pesquisas de opinião, mal lidas. Uma delas constatava que
para a maior parte dos eleitores, 22%, os
valores morais eram o fator determinante
na escolha do candidato. Mas o que esse
contingente mais prezava num presidente? Apenas 23% diziam que era uma forte
fé religiosa; 21% queriam um líder que tivesse posições claras; 19% queriam um
líder forte; 9% queriam um presidente
que trouxesse mudanças e 28% relatavam outras características. Ou seja, apenas 5% do eleitorado total estavam preocupados com religião. Quase ninguém.
Além disso, se 22% disseram que os valores morais eram o determinante, 20%
afirmaram que era a economia, uma diferença pequena. E mais: 19% acreditavam
que o principal era o terrorismo e 15%, o
Iraque. Somados os dois temas, irmãos
gêmeos, o que a pesquisa mostrava mesmo era que o fator decisivo em 2004 era
algo que poderíamos chamar de "a guerra". Zero religião. Neste ano, nada mudou,
porque a preocupação continua a mesma: o fracasso de Bush em controlar a situação no Iraque foi decisivo para que ele
perdesse o controle da Câmara e do Senado. Errará, porém, quem achar que o
pedido do eleitorado é para que o país
saia do Iraque rapidamente e esqueça esse assunto de terrorismo. A mensagem é
diferente. O que os americanos desejam é
que a coisa certa seja feita no Iraque e
que a luta contra o terrorismo continue,
de maneira mais competente. Não à toa,
grande parte dos democratas vitoriosos
era de centro, e nada menos do que dez
candidatos democratas eleitos são excombatentes no Iraque. Se os democratas
forçarem uma retirada antecipada que faça a situação no Iraque piorar ainda mais
pagarão um preço alto em 2008.
Há uma onda na imprensa americana
querendo mostrar que os intelectuais
que apoiaram a guerra estão arrependidos e que teriam admitido que estavam
errados. A revista "Vanity Fair" entrevistou grande parte deles para a sua próxima edição, mas já publicou extratos das entrevistas. Li os depoimentos, e, de
fato, há neles muito de desapontamento
e autocrítica, mas por terem confiado na
capacidade técnica do governo Bush. A
análise que fazem, correta, poderia ser
resumida nisto: "Se soubéssemos que
Bush seria tão incompetente na ocupação do Iraque, teríamos pensado duas
vezes antes de apoiar a invasão." Isso
não significa que eles estejam dizendo
que invadir o Iraque foi um erro.
Repito aqui o que já escrevi algumas
vezes. Se apenas com o apoio do Afeganistão, um Estado pária, a al-Qaeda conseguiu derrubar o WTC, atingir o Pentágono e quase atacar ou a Casa Branca
ou o Congresso, o que não faria se o Iraque resolvesse apadrinhá-la? Na fatwa
em que decretou que é dever de todo
muçulmano matar americanos e seus
aliados, Bin Laden dedicou metade do
texto a elogiar o Iraque, tido como uma
vítima dos EUA. E a fatwa é de 1998, muitos anos antes de qualquer invasão. Para uma nação recém-atacada em seu território, evitar que o casamento entre
Saddam e Bin Laden viesse a acontecer
era uma necessidade de Estado.
Isso não redime Bush de seus erros. A
quantidade de soldados sempre foi insuficiente. O espaço para que os remanescentes do baathismo e os terroristas da
al-Qaeda fizessem a festa ficou aberto.
Hoje, há 152 mil soldados americanos no
Iraque, um número pequeno. Para se ter
uma idéia, o Estado de São Paulo conta
com 140 mil policiais, e, claro, tem muita
dificuldade de controlar o PCC quando
ele resolve dar trabalho. No Iraque, seriam necessários muitos mais homens,
mas onde encontrá-los?
Os EUA acudiram a Europa três vezes
no século passado, a um enorme custo
de vidas e dinheiro, sempre defendendo-a de ameaças à liberdade. Na primeira vez em que, atacados, precisaram da
Europa, ouviram um não. Reino Unido e
outros poucos países mandaram, no
máximo, 20 mil soldados. Houvesse de
fato uma solidariedade intensa com os
EUA, o número de homens teria sido
imensamente maior, e a situação hoje,
provavelmente, estaria sob controle.
Antes da guerra, era comum ouvir
que sunitas, xiitas e curdos, sem Saddam, entrariam em guerra civil. Hoje, alguns vêem essa realidade concretizada,
mas é o oposto. É como se os terroristas
comungassem da mesma expectativa,
porque tentam de tudo para fazer essa
guerra eclodir: xiitas são mortos em
suas datas festivas, o que gera ondas de
retaliação. Mas isso não é guerra civil, é
o caos resultante de provocações. A
guerra civil acontece quando os grupos,
separados, pegam em armas para tomar
o poder, subjugar os outros ou deles se
separar. Que isso ainda não tenha acontecido, apesar dos esforços cotidianos
dos terroristas, é a prova de que a possibilidade de uma guerra civil, sem a intervenção do terror, era remota.
De qualquer forma, o povo americano
deu o recado: quer competência no
combate. Bush reagiu, demitindo Rumsfeld. Falta anunciar uma nova estratégia. Agora, a imprensa diz que o presidente será um morto-vivo, uma vez que
perdeu o controle do Senado e da Câmara. Bobagem. Clinton, em seus oito
anos de poder, governou os últimos seis
com as duas casas sob domínio republicano. Foi ao final, pessoalmente quase
devorado, mas sobreviveu, vendo os interesses do país preservados. Com
Bush, serão apenas dois anos.