"Elisabete Hart", O Globo, 30/10/2007 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Elisabete Hart", O Globo, 30/10/2007

Conheci Elisabete Hart pessoalmente apenas quando comecei a trabalhar na TV Globo, seis anos atrás, talvez. Mas, para mim, como para a maior parte dos brasileiros, sua voz era uma velha conhecida, de muitos anos, que nos fazia, a todos, ouvintes perfeitos da língua inglesa. Toda transmissão de evento em inglês na TV soava mais familiar com a participação dela. A maioria de nós guarda na memória as cerimônias de entrega do Oscar, e não sem razão, porque Bete fez história ali. Mas os eventos foram múltiplos: sua estréia foi na transmissão, ao vivo, do casamento de Lady Di com o príncipe Charles, em 1981. De lá para cá, não mais parou: discursos de presidentes estrangeiros, transmissão ao vivo de guerras (quando é crucial saber, com agilidade e sem erro, o que as emissoras geradoras estão noticiando), eventos esportivos, sessões tumultuadas na ONU, debates entre candidatos a presidente dos EUA. Bete fazia tudo bem, com calma, segurança e profissionalismo.

Vê-la trabalhar era realmente uma experiência. A festa do Oscar é longa e exaustiva até para os espectadores. Ela dá certo, no Brasil, quando a preocupa- ção da emissora que a transmite é fazer o público entender o que está sendo dito e não fingir que está "produzindo" o show (falando de filmes, figurinos, desempenho de atores, numa avalanche torrencial de palavras). Sem enrolação. Não é fácil. Os organizadores do Oscar mandam previamente o script da festa, mas as modificações são constantes e as lacunas, bem, as lacunas são o principal problema: naturalmente, são improvisos o que dizem os apresentadores (normalmente comediantes — com piadas, para um público não-americano, difíceis de entender) e, claro, todos os agradecimentos feitos pelos agraciados. Conhecidas previamente, apenas as poucas palavras dos atores escalados para citar os concorrentes e anunciar que o "Oscar goes to".

Com Bete, no entanto, nunca houve problema. Assim como apresentadores e comentaristas (os especialistas no assunto), ela sempre chegava à emissora já tendo lido integralmente as várias versões do roteiro e sabendo de cor o que ainda estava por vir. Via todos os filmes previamente e lia revistas sobre cinema, porque sabia que, para entender aquelas private jokes, era preciso mais do que saber inglês; era preciso conhecer a maté- ria. E Bete conhecia. Antes de entrar nos estúdios, fumava um cigarro (vício que nunca abandonou), tomava posição em sua mesa, botava os fones nos ouvidos pedindo para jamais ter acesso ao que iria ao ar, mas apenas ao que fosse transmitido dos EUA, e ficava com os olhos no monitor. Isso dava espaço para que, ao fim de cada prêmio, o comentarista fizesse as suas análises e que a apresentadora pudesse se concentrar na explicação do desenrolar do espetáculo e na tradu- ção do script (nos últimos anos, essas tarefas têm cabido aos competentíssimos José Wilker e Maria Beltrão).

O que impressionava em Bete era a sua capacidade de dar o tom certo, a en(tradutor-intérprete), sem dú- vida, e o Brasil tem profissionais maravilhosos nessa área. Mas Bete tinha algo mais: tinha o timing que a televisão exige e uma voz aveludada que, se ela quisesse, bem poderia ser a de um bem-dotado narrador. Mais que uma tradutora-intérprete, Bete era um profissional de TV. Esta era a razão do seu sucesso.

Por causa do nome, muitos imaginam que Bete tinha alguma ascendência americana, mas isso não é verdade. Muito pequena, aos dois anos de idade, morou lá por dois anos, até os quatro. No Brasil, não estudou na Escola Americana, mas em colégios brasileiros. Aqui, conheceu o pai americano de seus filhos, casou-se e voltou a morar nos Estados Unidos apenas aos 20 anos, já adulta, portanto. Morou lá oito anos. Falar inglês sem sotaque e traduzir a língua com perfeição e agilidade era um dom natural. Mas um dom que ela soube lapidar, com trabalho, com perseverança. Uma lição valiosa a muitos de nós.

Eu tive a oportunidade de me aproximar um pouco mais dela: nos meus dois livros, sempre que precisei de uma tradutora profissional para os textos em inglês que eu utilizava, eu me socorria dela. E foi sempre uma experiência gratificante: ela se interessava não apenas pelo trecho de que eu necessitava, mas por partes maiores, trocava idéias sobre o conteúdo, enriquecendo sempre os meus trabalhos. Convivendo com a doença há muitos anos, entre curas e recidivas, Bete nunca se pôs na posição de vítima: enfrentou o inimigo com bravura, sem autopiedade, falando da doença o necessário, mas sempre deixando transparecer que, para ela, o inimigo não era poderoso: falava do câncer como algo menor, porque, senão, viveria com medo, e não como gostava de viver, com bom humor, com otimismo, com garra. Não descuidou da saúde um dia sequer, até o fim. Mas mantendo sempre o seu espírito combativo.

No leito do hospital, ainda na sexta-feira, sentia-se desconfortável por ter de dizer um não a um pedido "meio automá- tico" ("Tradução? Bete Hart!") feito por um colega da Divisão de Esportes (que desconhecia como o estado dela se agravara nos últimos dias). Diante do pedido, disse, preocupada, para o filho, Eric: "Mas com essa voz enfraquecida, como serei capaz?" Notem que não disse um "Não, estou doente". Ela queria fazer, mas com a força de sempre. Coube ao Eric, sorrindo, dizer: "Calma, mãe, calma. Vamos pensar no seu tratamento." Bete morreu ontem, aos 64 anos. Deixou uma legião de amigos e uma multidão sem fim de admiradores.

O evento era a transmissão do anúncio da sede da Copa do Mundo em 2014. Uma festa, mas sem a voz de Bete.