"Em que acreditam os Muçulmanos", O Globo, 19/09/2001 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Em que acreditam os Muçulmanos", O Globo, 19/09/2001

Era uma vez Deus. Ele criou o mundo, as coisas, os animais e o homem. Do homem, criou a mulher e, aos dois, franqueou o Paraíso. Eles poderiam tudo fazer, menos comer o fruto proibido. Mas sucedeu aquilo que judeus e cristãos também sabem: a desobediência e a expulsão do Paraíso. Punidos, Adão e Eva passaram a ter que ganhar o pão com o suor do rosto.

Todos os homens, porém, nascem livres de pecado, pois Deus não puniria os homens, infinitas vezes, pelo mesmo crime: segundo os muçulmanos, não existe o pecado original. Depois de Adão e Eva, vieram Caim e Abel, os filhos dos filhos de seus filhos até Noé, que salvou a Humanidade do dilúvio.

Com Abraão, Deus fez sua aliança. Sim, o mesmo Abraão da Torá e do Antigo Testamento. Ele, o patriarca das três religiões (o judaísmo, o cristianismo e o islamismo), era casado com Sara, que não podia lhe dar filhos. Para agradar ao marido, Sara deixou que ele se deitasse com Agar, sua escrava egípcia. Dessa união, nasceu Ismael. Quando Ismael tinha 13 anos, Deus avisou Abraão que ele teria um filho com Sara. Abraão já tinha 99 anos e Sara 90. Isaac nasceu, e Deus recomendou que ele fosse circuncidado no oitavo dia. Abraão se circuncidou também, assim como Ismael, que tinha 13 anos. A circuncisão passou a ser praticada pelos mu- çulmanos (assim como pelos judeus), como símbolo da aliança com Deus. Com o nascimento de Isaac, Sara passou a ter um ciúme muito grande de Agar e de Ismael. Deus então ordenou que Abraão levasse Ismael e Agar para o deserto e lá os deixasse. Mas disse a Abraão que ele nada temesse: Ismael estaria em segurança e de sua descendência adviriam na- ções. De Isaac também adviriam na- ções. Esse relato está na Torá e no Antigo Testamento, que, no entanto, não dão seqüência à história de Ismael.

A tradição islâmica nos conta o que teria acontecido depois. Quando chegou ao lugar onde hoje está a cidade de Meca, Agar se desesperou. A comida tinha acabado e a água também. Mas o arcanjo Gabriel, sim, o mesmo que anunciaria a Maria, séculos depois, o nascimento de Jesus, pediu que Agar se acalmasse, pois o Senhor jamais a abandonaria. Neste instante, Ismael, que brincava na areia do deserto, fez um buraco e dele começou a jorrar água em abundância. A fonte logo atraiu alguns pássaros e a presença dos pássaros no céu chamou a atenção de uma caravana de beduínos que passava ao longe. Os beduínos se aproximaram, um deles se apaixonou por Agar e todos se fixaram na região.

Mas a tradição islâmica conta que Abraão, sendo bom pai, jamais teria abandonado Ismael à própria sorte. Dessa forma, ele sempre o visitava, educando-o na crença do Deus Único. Um dia, Deus pediu que Abraão e Ismael reconstruíssem um antigo templo erguido por Adão, e assim foi feito. Quando o templo estava novamente de pé, Deus ordenou que Abraão avisasse ao mundo inteiro que dali em diante passaria a ser obrigação de todo crente pelo menos uma vez na vida fazer a peregrinação àquele lugar — a Mesquita de Meca.

Abraão argumentou que ninguém o ouviria, mas Deus insistiu em que sua ordem fosse cumprida. Quando Abraão abriu a sua boca, de sua garganta ecoou um som tão alto que suas palavras foram ouvidas nos quatro cantos do mundo. E assim começou a peregrinação a Meca. Os anos foram passando e a palavra de Deus foi sempre se fazendo presente pela boca dos profetas, que se sucederam. Jacó, José, Moisés, que em árabe é Musa. Depois, vieram os outros até chegar Jesus, um dos profetas mais respeitados pelo islamismo, considerado um milagre de Deus, porque nascido de uma Virgem, Maria. A tradição islâmica acredita em todos os milagres de Jesus, mas não acredita que seja Deus ou filho de Deus: é um profeta de grande envergadura, fruto de um milagre divino.

No século VI, por volta do ano de 570, na cidade de Meca, nasceu Muhamad, o profeta do islamismo, considerado descendente direto de Ismael. Ainda criança, ficou órfão de pai e mãe. Meca, naquele tempo, já não era monoteísta como no tempo de Abraão e Ismael: o templo de Meca abrigava três centenas de deuses. Apesar disso, Muhamad sempre acreditou em um só Deus (Alá é a palavra árabe para Deus, assim como God é Deus em inglês). Era um homem reto e íntegro desde sempre, muito amado e admirado. Casou-se com Kadija, a quem foi fiel até a morte dela. Aos 40 anos, Muhamad teve uma visão. O arcanjo Gabriel apareceu-lhe e ordenou que ele lesse o que estava escrito. A luz era tão intensa que Muhamad desmaiou. Ao acordar, disse ao anjo que era analfabeto e que, por isso, não poderia ler. O anjo então voltou a ordenar que ele lesse e Muhamad então conseguiu repetir as palavras de Deus.

O evento perturbou-o imensamente. Durante três anos, somente um pequeno grupo à sua volta sabia da revelação. Depois, ele começou a fazer sua pregação pública. Foi perseguido pelos homens de Meca, e, em 622, teve de refugiar-se em Medina, uma cidade próxima que o acolheu e aos seus seguidores. O calendário muçulmano tem seu marco zero aí, assim como o calendário cristão parte do nascimento de Cristo. Tempos depois, Muhamad conseguiu conquistar Meca e convertê-la ao culto do Deus Único.

O profeta continuou a receber as revelações de Deus por 23 anos e o conjunto delas forma o Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos, que se pretende uma releitura das Escrituras Sagradas, do Gênesis ao Apocalipse. A tradição islâmica conta que Muhamad um dia disse o seguinte: "Não haverá nenhum profeta depois de mim. A minha relação com a longa cadeia de profetas pode ser compreendida como a parábola dum palá- cio: o palácio estava maravilhosamente construído. Tudo estava completo, exceto o espaço para um tijolo. Eu ocupei esse lugar e agora o castelo ficou completo." O Alcorão, no entanto, respeita e admira os livros anteriores, mas pretende revê-los. É como se Deus tivesse feito uma tentativa desesperada de se fazer entender pela última vez. É por essa razão que as interdições alimentares dos muçulmanos são as mesmas dos judeus (como não comer porco, por exemplo). É também por isso que há proximidades com o cristianismo: no fim dos tempos, antes do Dia do Juí- zo Final, Jesus voltará à Terra, tal como está previsto no Apocalipse. Os cinco pilares do islamismo, as cinco obrigações dos fiéis, são as seguintes: acreditar em um só Deus e em Muhamad como o último profeta; orar cinco vezes ao dia; dar esmolas; jejuar durante o mês do Ramadã; e fazer a peregrinação a Meca pelo menos uma vez na vida. islamismo quer dizer literalmente "submissão voluntária à vontade de Deus" (não existe, portanto, conversão forçada).

Visto assim, percebe-se que o islamismo está perfeitamente inserido dentro da tradição judaico-cristã. Estes são, em linhas gerais, os pontos de convergência. Evidentemente, todo um outro artigo poderia ser escrito para ressaltar as (muitas) diferenças. Mas em tempos difíceis como os nossos, em que o risco de uma explosão de intolerância está cada vez mais forte, não vale a pena. O que devemos nos esfor- çar para dizer é que o islamismo só é exótico para quem não o conhece.