O
utro dia, li excelente reportagem no GLOBO sobre o cadastro único dos pobres beneficiados pelos programas
sociais. Começava assim: "A pobreza
no Brasil tem idade, sexo e escolaridade bem definidos." A frase era uma variante de outra presente no estudo do
Ministério do Desenvolvimento Social
em que a reportagem se baseou: "A pobreza no Brasil é jovem, feminina e tem
pouca instrução".. Nada sobre cor. Estranhei, porque as duas frases derivam
daquela que inicia dez em dez estudos
sobre pobres: "A pobreza no Brasil tem
cor e ela é negra." Num Brasil onde tudo agora é raça, por que a omissão?
Descobri que os dados existem,
mas não foram divulgados. A primeira
informação era que eles tinham se
perdido nos computadores da Caixa,
responsável pelo processamento do
"Cadúnico", como o cadastro é conhecido. Depois, disseram que o quesito "cor" não fora preenchido por
mais de 90% dos pobres.
Nem uma coisa nem outra. Obtive as
informações por outras vias, e os cadastrados assim se declaram: 60,62%,
brancos; 17,11%, negros; 1,39%, amarelos; 0,40%, pardos; e 19,26% não quiseram responder. O baixíssimo número
de pardos e o alto número dos que nada declararam devem ter feito o ministério considerar os dados inconsistentes. Porque eles estão em total contraste com os estudos do Ipea, que
mostram que 57% dos pobres são pardos; 36%, brancos e 7%, negros. Estaríamos diante de um caso em que a
realidade contrariou a teoria.
Vejo três hipóteses. A primeira: o cadastro estaria beneficiando brancos
que não são pobres. A segunda: o cadastro é correto, todos são pobres, mas
o perfil da pobreza no mundo real não
bate com o desenhado na teoria. A terceira: os brasileiros não levam mesmo
em conta essa coisa de cor e se classificam como querem. Preferiria apostar na última hipótese,
mas ponho minhas fichas
na primeira.
Grande desperdício. Já
vêm do Cadúnico 100%
dos beneficiados pelo
Bolsa-Família, que, em
2003, gastou cerca de R$
6 bi. Hoje, muitos beneficiados de outros programas similares vêm dele
também e, no futuro, todos virão. Todos esses
programas somados gastaram em 2003 a astronô-
mica cifra de R$ 13 bi. É mais do que
está previsto para Educação em 2004
(R$ 12,2 bi). Sou crítico do assistencialismo, mas, se existe, os bilhões têm de
ser usados com as pessoas certas. O
caso da cor é uma exceção?
Não. Em fevereiro deste ano, época
em que os dados foram processados,
65% dos cadastrados declararam renda familiar per capita de até R$ 50 e
19% disseram-se na faixa entre R$50 e
R$ 100. A meta é cadastrar todos abaixo da linha de pobreza: renda familiar
per capita inferior a meio salário-mí-
nimo, R$ 120 em fevereiro. A maior
parte, portanto, sequer seria de pobres, mas de indigentes, aqueles com
renda familiar per capita inferior a um
quarto do mínimo, R$ 60, na mesma
época. Mas a renda declarada, sem
comprovação, não combina com os
indicadores do grupo.
As estatísticas não foram divulgadas seguindo os critérios do IBGE, o
que impede uma comparação eficaz
com as pesquisas existentes. Mas, considerando 4 indivíduos por famí-
lia, a maior parte dos cadastrados tem renda familiar total inferior a R$
200, menos, portanto,
que o salário-mínimo da
época em que os dados
foram processados (R$
240). Isso permite algumas aproximações. 23%
dos chefes de domicílio
cadastrados são analfabetos, 34% beneficiam-se
da rede pública de esgoto, 62% têm coleta de lixo. Entre os que ganham até
um salário-mínimo, segundo a PNAD
de 2002, 34% são analfabetos, 23,6%
têm rede de esgoto e 55% têm coleta
de lixo, números bem piores dos que
os dos cadastrados que, na maior parte, em tese, ganhariam menos do que o
mínimo. Os números coincidem quando o assunto é acesso à rede de água e
faixa etária. Sobre energia elétrica, os
dados da PNAD são superiores: 88%
contra 77% dos cadastrados.
Muitos vão atribuir ao racismo o
número maior de brancos no cadastro e as distorções que isso causa,
mas a forma como o cadastro é feito
explica melhor o que acontece. O trabalho cabe às prefeituras, que podem
usar funcionários, estudantes, terceiros contratados, ONGs ou lideranças
comunitárias, como queiram. Em algumas cidades, essas pessoas vão
aos pobres; em outras, os pobres vão
a elas. No primeiro caso, a menos que
tenha ocorrido um milagre ético, os
prefeitos podem estar cadastrando,
na melhor das hipóteses, os pobres
de sua base eleitoral; na hipótese
mais realista, podem estar cadastrando a sua base eleitoral menos afortunada, pobre, mas não os mais pobres
a que se destinam os programas sociais. No segundo caso, como acontece sempre, aqueles entre os menos
afortunados mais bem equipados, intelectual e economicamente, acham
mais rapidamente os meios para se
cadastrar; os mais desequipados não
encontram o caminho das pedras.
O Cadúnico, herdado do governo
anterior, está sendo melhorado, diz o
ministério: um convênio será firmado para que o IBGE analise os dados.
Detectadas discrepâncias, o governo
pediria providências aos municípios.
Mas, como se trata de bilhões de
reais, não apenas a análise, mas o cadastramento deveria ser feito por
profissionais, o IBGE. Teríamos mais
chances de acertar o alvo