Cruz
Outro dia um amigo estava
irritadíssimo, porque descobriu que o governo Sarney investira o equivalente
a R$ 12,8 bilhões ao ano em energia
contra uma média de R$ 5,3 bilhões
ao ano no governo FH. Para ele estava tudo claro: o atual presidente economizou indevidamente alguns bilhões, provavelmente para fazer frente aos compromissos com o FMI, e
deu no que deu, o país ficou às escuras. Fiquei intrigado, perguntandome por que o governo foi tão imprevidente, por que não gastou tudo o
que tinha de gastar para evitar a situação que hoje vivemos.
Fui conferir.
Primeiro, sim, é verdade. Sarney
investiu de fato uma média anual
equivalente a R$ 12,8 bilhões em
energia (e o governo Figueiredo investira valores ainda mais elevados,
mas fiquemos no período 1985/1989,
para não complicar ainda mais). Qual
terá sido o milagre?
Nenhum, tudo fica claro se outras
contas são analisadas. Considerado
o período entre 1985 e 1989, os gastos sociais de Sarney foram em mé-
dia de R$ 94,2 bilhões (valores atualizados para dezembro de 2000). Fernando Henrique gastou, por sua vez,
uma média anual de R$ 134, 5 bilhões, um aumento de 43%. Como
gasto social, está considerado tudo o
que foi aplicado em educação e cultura, saúde, alimentação e nutrição,
saneamento e proteção do meio ambiente, previdência social, assistência social, emprego e defesa do trabalhador, organização agrária, ciência e tecnologia, habitação e urbanismo, treinamento de recursos humanos e benefícios a servidores. Como
conseqüência desse aumento substancial na área social, a taxa de mortalidade infantil, que era de 50,7 por
mil nascimentos em 1989, caiu para
34,6 em 1999, uma queda expressiva,
da ordem de 32%.
Em educação, a situação é bem semelhante. A taxa de analfabetismo
(acima de 10 anos de idade) era de
18,2% em 1989 e caiu para 12,3% em
99. A taxa de escolarização (crianças
de 7 a 14 anos) era de 79,7% e pulou
para 95,7% em 1999 (último dado disponível no IBGE).
Na reforma agrária, o fenômeno é o
mesmo: entre 85 e 89, foram assentadas apenas 83.687 famílias — média
anual de 16.737 — contra 506.232 assentadas por FH de 95 a 2001, uma
média anual de 80.367 assentamentos, número quase cinco vezes maior.
Em saneamento, idem: em 89, 72,66%
dos domicílios eram abastecidos por
rede geral de água; em 1999, esse nú-
mero cresceu para 79,8%.
E, é preciso lembrar, no governo
Sarney o déficit público era imenso,
ou seja, gastava-se mais do que se arrecadava. O resultado era uma infla-
ção que chegou a 1.972,9% em 89. Isso sem falar na moratória da dívida
externa, que o governo acabou tendo
de decretar, decisão que nos faz sofrer até os dias de hoje.
Com Fernando Henrique, não temos déficit: o superávit primário mé-
dio é de 1,03% do PIB. A partir de 99,
quando começou a vigorar o programa de ajuste, foram obtidos superá-
vits de 3,29% (99) e 3,54% em 2000.
Em conseqüência, a inflação está nos
patamares mais baixos da história do
país. Com o fim do chamado imposto
inflacionário, estima-se que R$ 20 bilhões tenham sido transferidos para
as populações de renda mais baixa.
Minha primeira idéia foi dizer ao
meu amigo: "Rapaz, descobrimos o
óbvio, somos um país pobre, não se
pode fazer tudo ao mesmo tempo. E
país pobre é assim mesmo, quando
não chove tem apagão. Então fica
combinado assim, se você quer investir mais em energia, tem de decidir se deixa morrer algumas crianças
a mais antes de completar um ano de
idade ou se coloca para fora da escola uns tantos garotos. Ou então tem
de escolher entre deixar de assentar
a turma do MST ou conviver um pouco mais com umas valas negras."
Mas eu não disse nada disso ao
meu amigo. Não disse, porque na verdade há uma terceira opção, que o
governo FH tentou seguir. Todos nos
recordamos de que o discurso deste
governo, antes, durante e depois das
eleições, era que o Estado brasileiro
tinha esgotado sua capacidade de investir. Privatizar, diferentemente do
que hoje a oposição quer fazer crer,
não foi uma rendição ao FMI ou uma
decisão, carregada de suspeitas, de
entregar o patrimônio nacional a investidores privados, brasileiros ou
estrangeiros. Privatizar foi a saída
que o governo julgou ter encontrado
para superar este fato singelo: os recursos são finitos.
Decidiu-se então que ao Estado caberia investir mais no social (saúde,
educação, saneamento etc.), área
pouco atraente para investidores. E à
iniciativa privada seriam franqueados os demais setores, aqueles mais
convidativos ao capital privado. Nas
telecomunicações, isso foi feito com
grande êxito. Todos nos lembramos
da deficiência dos serviços quando
as empresas eram estatais: o número
de telefones celulares no país passou
de 800 mil, antes da privatização, para 25 milhões, e o de telefones fixos,
de 13 milhões para 40 milhões. Hoje,
também basta uma simples compara-
ção entre a Dutra, privatizada, e a BR-
101, ainda nas mãos do Estado, para
se perceber os avanços que foram
conseguidos com a participação do
setor privado.
No setor elétrico, a primeira medida foi privatizar a distribuição. E por
um motivo simples: as geradoras estavam endividadas, eram deficitárias
e pouco atraentes, porque sofriam o
calote impiedoso das distribuidoras
públicas, muitas delas estaduais (durante todo o governo Quércia, em
São Paulo, a Cesp não pagou um tostão a Furnas, para citar apenas um
exemplo).
Hoje, as empresas geradoras estão
em melhores condições justamente
porque as distribuidoras, privadas,
pagam em dia as suas contas. Se a
privatização da geração tivesse sido
possível, na época certa, talvez hoje
os investimentos estivessem num ní-
vel ótimo e a ameaça de apagão não
existisse: empresas privadas querem
o lucro e para isso buscam a eficiência administrativa e a racionalização
de custos. Reinvestir no crescimento
das empresas é um imperativo: ou se
cresce ou se morre.
Isso tudo leva ao desmentido de
um outro mito, que nos últimos dias
ganhou ares de verdade. As empresas públicas de geração de energia,
cheias de dinheiro, foram proibidas
de investir, em parte porque seriam
privatizadas em pouco tempo e em
parte porque o FMI considera os investimentos das estatais como despesas, o que faria aumentar o déficit
público. Alguns críticos do governo
têm dito que bastaria pedir ao FMI
que liberasse as estatais desse compromisso para que os investimentos
jorrassem e não houvesse crise, como se tudo fosse uma questão de boa
vontade e não de critérios técnicos
aceitos internacionalmente, dos
quais não se pode escapar.
A esses críticos, cabe uma lembrança: no período Sarney, as empresas públicas do setor elétrico foram
usadas para captar dólares no exterior na nossa eterna necessidade de
fechar os balanços de pagamentos.
Endividaram-se indevidamente, para
outros fins, porque assim desejou o
governo. E isso só foi possível porque elas pertenciam justamente ao
governo. Com um passado desses, vá
tentar mudar critérios técnicos no
FMI. Tarefa impossível.
Nesse caminho, o governo enfrentou dois obstáculos, que não soube
como superar. O primeiro, foi que a
privatização do setor elétrico não pô-
de ser completada porque setores
nacionalistas tumultuaram o processo. Quem não se lembra do governador de Minas, Itamar Franco, em barraca de campanha, monitorando manobras militares contra a privatiza-
ção de Furnas? A privatização atrasou e o governo não soube como mobilizar favoravelmente a opinião pú-
blica. Sem recursos e sem privatiza-
ção, optou, consciente ou inconscientemente, por contar com o imponderável, as chuvas.
Se tivesse chovido, a crise estaria
adiada e a estratégia inicial do governo poderia ter sido mantida por mais
tempo. As chuvas não vieram, a crise
foi deflagrada, expondo o país a essa
situação terrível que hoje vivemos.
Não se exima o governo de culpa e de
responsabilidade. Mas não se cobre
dele solução mágica, porque mágicas
não existem.
O curioso disso tudo é que o governo FH enfrenta hoje sua maior crise justamente por ter feito aquilo que
sempre disseram que ele não fez: ter
investido prioritariamente no social.
Fica também a constatação, óbvia
mas que poucos têm dito: somos um
país pobre, os recursos são escassos
e é preciso fazer escolhas a todo momento.
E, por último, fica a certeza de que
estão errados aqueles que dizem que
a ameaça de apagão enterrou de vez
a idéia de privatização do setor elé-
trico: ao contrário, a crise deixa claro
que ou se discute ainda mais seriamente a privatização, provavelmente
aperfeiçoando o atual modelo, ou vamos todos ficar no escuro