"Energia e mortalidade infantil", O Globo, 21/06/2001 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Energia e mortalidade infantil", O Globo, 21/06/2001

Cruz

"Energia e mortalidade infantil", O Globo, 21/06/2001

Outro dia um amigo estava irritadíssimo, porque descobriu que o governo Sarney investira o equivalente a R$ 12,8 bilhões ao ano em energia contra uma média de R$ 5,3 bilhões ao ano no governo FH. Para ele estava tudo claro: o atual presidente economizou indevidamente alguns bilhões, provavelmente para fazer frente aos compromissos com o FMI, e deu no que deu, o país ficou às escuras. Fiquei intrigado, perguntandome por que o governo foi tão imprevidente, por que não gastou tudo o que tinha de gastar para evitar a situação que hoje vivemos.

Fui conferir.

Primeiro, sim, é verdade. Sarney investiu de fato uma média anual equivalente a R$ 12,8 bilhões em energia (e o governo Figueiredo investira valores ainda mais elevados, mas fiquemos no período 1985/1989, para não complicar ainda mais). Qual terá sido o milagre?

Nenhum, tudo fica claro se outras contas são analisadas. Considerado o período entre 1985 e 1989, os gastos sociais de Sarney foram em mé- dia de R$ 94,2 bilhões (valores atualizados para dezembro de 2000). Fernando Henrique gastou, por sua vez, uma média anual de R$ 134, 5 bilhões, um aumento de 43%. Como gasto social, está considerado tudo o que foi aplicado em educação e cultura, saúde, alimentação e nutrição, saneamento e proteção do meio ambiente, previdência social, assistência social, emprego e defesa do trabalhador, organização agrária, ciência e tecnologia, habitação e urbanismo, treinamento de recursos humanos e benefícios a servidores. Como conseqüência desse aumento substancial na área social, a taxa de mortalidade infantil, que era de 50,7 por mil nascimentos em 1989, caiu para 34,6 em 1999, uma queda expressiva, da ordem de 32%.

Em educação, a situação é bem semelhante. A taxa de analfabetismo (acima de 10 anos de idade) era de 18,2% em 1989 e caiu para 12,3% em 99. A taxa de escolarização (crianças de 7 a 14 anos) era de 79,7% e pulou para 95,7% em 1999 (último dado disponível no IBGE).

Na reforma agrária, o fenômeno é o mesmo: entre 85 e 89, foram assentadas apenas 83.687 famílias — média anual de 16.737 — contra 506.232 assentadas por FH de 95 a 2001, uma média anual de 80.367 assentamentos, número quase cinco vezes maior. Em saneamento, idem: em 89, 72,66% dos domicílios eram abastecidos por rede geral de água; em 1999, esse nú- mero cresceu para 79,8%.

E, é preciso lembrar, no governo Sarney o déficit público era imenso, ou seja, gastava-se mais do que se arrecadava. O resultado era uma infla- ção que chegou a 1.972,9% em 89. Isso sem falar na moratória da dívida externa, que o governo acabou tendo de decretar, decisão que nos faz sofrer até os dias de hoje.

Com Fernando Henrique, não temos déficit: o superávit primário mé- dio é de 1,03% do PIB. A partir de 99, quando começou a vigorar o programa de ajuste, foram obtidos superá- vits de 3,29% (99) e 3,54% em 2000. Em conseqüência, a inflação está nos patamares mais baixos da história do país. Com o fim do chamado imposto inflacionário, estima-se que R$ 20 bilhões tenham sido transferidos para as populações de renda mais baixa.

Minha primeira idéia foi dizer ao meu amigo: "Rapaz, descobrimos o óbvio, somos um país pobre, não se pode fazer tudo ao mesmo tempo. E país pobre é assim mesmo, quando não chove tem apagão. Então fica combinado assim, se você quer investir mais em energia, tem de decidir se deixa morrer algumas crianças a mais antes de completar um ano de idade ou se coloca para fora da escola uns tantos garotos. Ou então tem de escolher entre deixar de assentar a turma do MST ou conviver um pouco mais com umas valas negras."

Mas eu não disse nada disso ao meu amigo. Não disse, porque na verdade há uma terceira opção, que o governo FH tentou seguir. Todos nos recordamos de que o discurso deste governo, antes, durante e depois das eleições, era que o Estado brasileiro tinha esgotado sua capacidade de investir. Privatizar, diferentemente do que hoje a oposição quer fazer crer, não foi uma rendição ao FMI ou uma decisão, carregada de suspeitas, de entregar o patrimônio nacional a investidores privados, brasileiros ou estrangeiros. Privatizar foi a saída que o governo julgou ter encontrado para superar este fato singelo: os recursos são finitos.

Decidiu-se então que ao Estado caberia investir mais no social (saúde, educação, saneamento etc.), área pouco atraente para investidores. E à iniciativa privada seriam franqueados os demais setores, aqueles mais convidativos ao capital privado. Nas telecomunicações, isso foi feito com grande êxito. Todos nos lembramos da deficiência dos serviços quando as empresas eram estatais: o número de telefones celulares no país passou de 800 mil, antes da privatização, para 25 milhões, e o de telefones fixos, de 13 milhões para 40 milhões. Hoje, também basta uma simples compara- ção entre a Dutra, privatizada, e a BR- 101, ainda nas mãos do Estado, para se perceber os avanços que foram conseguidos com a participação do setor privado.

No setor elétrico, a primeira medida foi privatizar a distribuição. E por um motivo simples: as geradoras estavam endividadas, eram deficitárias e pouco atraentes, porque sofriam o calote impiedoso das distribuidoras públicas, muitas delas estaduais (durante todo o governo Quércia, em São Paulo, a Cesp não pagou um tostão a Furnas, para citar apenas um exemplo). Hoje, as empresas geradoras estão em melhores condições justamente porque as distribuidoras, privadas, pagam em dia as suas contas. Se a privatização da geração tivesse sido possível, na época certa, talvez hoje os investimentos estivessem num ní- vel ótimo e a ameaça de apagão não existisse: empresas privadas querem o lucro e para isso buscam a eficiência administrativa e a racionalização de custos. Reinvestir no crescimento das empresas é um imperativo: ou se cresce ou se morre.

Isso tudo leva ao desmentido de um outro mito, que nos últimos dias ganhou ares de verdade. As empresas públicas de geração de energia, cheias de dinheiro, foram proibidas de investir, em parte porque seriam privatizadas em pouco tempo e em parte porque o FMI considera os investimentos das estatais como despesas, o que faria aumentar o déficit público. Alguns críticos do governo têm dito que bastaria pedir ao FMI que liberasse as estatais desse compromisso para que os investimentos jorrassem e não houvesse crise, como se tudo fosse uma questão de boa vontade e não de critérios técnicos aceitos internacionalmente, dos quais não se pode escapar.

A esses críticos, cabe uma lembrança: no período Sarney, as empresas públicas do setor elétrico foram usadas para captar dólares no exterior na nossa eterna necessidade de fechar os balanços de pagamentos. Endividaram-se indevidamente, para outros fins, porque assim desejou o governo. E isso só foi possível porque elas pertenciam justamente ao governo. Com um passado desses, vá tentar mudar critérios técnicos no FMI. Tarefa impossível.

Nesse caminho, o governo enfrentou dois obstáculos, que não soube como superar. O primeiro, foi que a privatização do setor elétrico não pô- de ser completada porque setores nacionalistas tumultuaram o processo. Quem não se lembra do governador de Minas, Itamar Franco, em barraca de campanha, monitorando manobras militares contra a privatiza- ção de Furnas? A privatização atrasou e o governo não soube como mobilizar favoravelmente a opinião pú- blica. Sem recursos e sem privatiza- ção, optou, consciente ou inconscientemente, por contar com o imponderável, as chuvas.

Se tivesse chovido, a crise estaria adiada e a estratégia inicial do governo poderia ter sido mantida por mais tempo. As chuvas não vieram, a crise foi deflagrada, expondo o país a essa situação terrível que hoje vivemos. Não se exima o governo de culpa e de responsabilidade. Mas não se cobre dele solução mágica, porque mágicas não existem.

O curioso disso tudo é que o governo FH enfrenta hoje sua maior crise justamente por ter feito aquilo que sempre disseram que ele não fez: ter investido prioritariamente no social. Fica também a constatação, óbvia mas que poucos têm dito: somos um país pobre, os recursos são escassos e é preciso fazer escolhas a todo momento.

E, por último, fica a certeza de que estão errados aqueles que dizem que a ameaça de apagão enterrou de vez a idéia de privatização do setor elé- trico: ao contrário, a crise deixa claro que ou se discute ainda mais seriamente a privatização, provavelmente aperfeiçoando o atual modelo, ou vamos todos ficar no escuro