A maior parte dos analistas diz que a
decisão dos EUA de ir à guerra sem o
aval do Conselho de Segurança põe o
mundo em perigo: a ONU passaria a ter
um papel irrelevante. A História nos
mostra, porém, que pouca coisa mudou na maneira de agir dos EUA e que,
portanto, pouca coisa vai mudar no papel da ONU. Talvez o equívoco da diplomacia americana tenha sido exatamente tentar fazer, desta vez, a comunidade
internacional compartilhar os seus temores.
No 11 de Setembro, acreditava-se
que a reação americana, tanto contra o
Afeganistão como contra outros inimigos, como o Iraque, seria imediata. Se
tivesse sido, a repercussão teria sido
menos negativa do que é hoje. Os EUA,
porém, passaram 27 dias tentando provar ao mundo, na ONU, que Bin Laden
era a mente por trás dos atentados. Na
época, o teórico Noam Chomsky, como
sempre apressadamente, dizia que
Bush fracassara ao não conseguir exibir a prova cabal e que, portanto, o ataque seria ilegítimo. Muito tempo depois, quando Bin Laden confessou a autoria e deu parabéns póstumos aos terroristas, Chomsky não se corrigiu.
Apesar de tudo, os EUA acabaram
conseguindo o aval da ONU, um aval indireto. O Conselho de Segurança aprovou uma resolução que falava em combater o terrorismo, "por todos os
meios". Com o apoio entusiasmado da
França, os EUA foram à guerra agarrados apenas nessa expressão: "por todos os meios". Com o Iraque, um ano e
meio depois do 11 de Setembro, Bush
novamente tentou contrariar a prática
americana de agir sozinho, mas fracassou, já tendo contra si a amnésia que se
abate sobre as multidões.
Curiosa é a posição da França. No caso do Afeganistão, aceitou a ação militar como legítima, mesmo sem uma resolução expressa da ONU nesse sentido; no caso do Iraque, discordou quando os EUA disseram que uma resolução
expressa autorizando a guerra seria
desnecessária porque a anterior deixara claro que o país "sofreria conseqüências graves" se não se desarmasse. Os
EUA decidiram então ir à guerra mesmo
sozinhos, como sempre fizeram. Sem
que a ONU desaparecesse por isso.
Depois da Segunda Guerra, com o
mundo dividido em dois blocos, o Conselho de Segurança era inútil: o que interessava aos EUA, a URSS vetava e vice-versa. Um retrospecto, da década de
80 para cá, é instrutivo (antes, o poderio da URSS continha os EUA e vice-versa; depois, mesmo antes da queda do
Muro de Berlim, a fraqueza dos sovié-
ticos permitiu os vôos solos americanos). Em 1983, depois que um golpe da
extrema esquerda derrubou o primeiroministro de Granada, Maurice Bishop,
ele também um esquerdista, Ronald
Reagan, invadiu a ilha e pôs no poder
seus aliados. Seu objetivo era impedir
que Granada se tornasse um satélite soviético. Em 1986, após muitas escaramuças, quando um atentado a bomba
numa discoteca de Berlim matou duas
pessoas, incluindo um americano, os
EUA culparam a Líbia e lançaram um
pesado ataque a Trípoli. Em 1989, depois de meses de provocações, o ditador panamenho Manuel Noriega sofreu
a ira de George Bush, o pai: o Panamá
foi invadido por 27 mil soldados e Noriega, preso, foi levado para os EUA, onde cumpre pena de prisão perpétua por
tráfico de drogas. Em 1994, o democrata Bill Clinton invadiu o Haiti para devolver o poder ao presidente deposto
Jean-Baptiste Aristide. Em 1998, em resposta aos atentados a bomba às embaixadas americanas no Quênia e na Tanzânia, o mesmo Clinton desfechou um
ataque aéreo ao Sudão, acusado de
abrigar terroristas. E, em 1999, diante
do veto russo, na ONU, à intervenção
armada no conflito da Bósnia, Clinton
conseguiu que a Otan entrasse no conflito para evitar o massacre dos muçulmanos de Kosovo.
Por espantoso que possa parecer, foi
a insistência de Bush em conseguir o
aval da ONU, contrariando a política de
seus antecessores, que levou os Estados Unidos a esse imenso desgaste internacional. E não o contrário. Às suspeitas dos outros países de que a guerra era só por petróleo, Bush respondeu
com o convite para que todos participassem da campanha, o que impediria,
na prática, que os EUA fizessem valer
apenas os seus interesses.
O mundo não quis.
Com a queda do Muro, acreditou-se
que o Conselho de Segurança finalmente desempenharia as funções para as
quais foi criado. Talvez essa tenha sido
a crença de Bush. Isso, no entanto, não
aconteceu (a primeira Guerra do Golfo
foi o seu único grande momento). Agora, na ausência da URSS, parte da Europa tentou reviver a polarização do
mundo em dois blocos. Com as amea-
ças de veto, porém, só conseguiu reviver a inutilidade do Conselho de Segurança, porque lhe faltou o poderio militar e a disposição dos soviéticos.
A ONU, contudo, não vai desaparecer: voltará a ser apenas o que era. O
Conselho de Segurança se recolherá ao
ostracismo e, em contrapartida, a Assembléia Geral, que perdera importância, reviverá os seus melhores momentos. A vocação da ONU é mesmo ser um
grande fórum de debates.
No próximo artigo, vou falar de petróleo, tentando mostrar que nem os
Estados Unidos foram à guerra para obtê-lo, nem a França ameaçou com o veto apenas para manter seus interesses
no Iraque.