A
abertura dos Jogos Olímpicos foi realmente bonita,
mas eu pergunto: ninguém aí
ficou com medo não? Os
tambores ressoando daquela maneira, numa gesticulação que, para mim,
parecia um grito de guerra, aquela
multidão em êxtase nacionalista, tudo
coroado com aqueles soldados absolutamente fardados, de quepes altíssimos, luvas brancas, eretos, reverenciando a bandeira ao som do hino nacional, nada disso assustou? Em outros jogos, claro, a bandeira é hasteada por um ou dois militares, mas, pelo
que revi, nunca por tantos e com
aquela coreografia marcial. Fiquei
com os dois pés atrás. Quem tem na
memória os filmes sobre os Jogos
Olímpicos de Berlim, em 1936, com
aquela grandiosidade nazista, sabe do
que eu estou falando. Chico Caruso,
que consegue resumir tudo, publicou,
domingo, Bush e Putin conversando
na cerimônia e a frase: "Com tiro na
nuca, até eu."
Esse negócio de espírito olímpico
não me convence. Acho um absurdo
que se tenha deixado de lado a polí-
tica em prol do "congraçamento" das
nações promovido pelos esportes.
Que nações? Como esquecer o fato de
que a China hoje é a mais rica e poderosa ditadura do mundo, que não
tem o menor constrangimento de fazer as piores coisas no cenário internacional, há anos? Só para citar três
exemplos, não tira as mãos do Tibete,
apóia o regime genocida do Sudão
(com armas e dinheiro) e, na ONU, vetou, ao lado da Rússia, as sanções que
o mundo queria impor ao Zimbábue,
onde a ditadura atroz de Robert Mugabe roubou de forma descarada as
eleições que davam a vitória a seu
opositor. No plano interno, reina a repressão e a censura, não há o menor
vestígio de liberdade.
A Anistia Internacional denuncia
que, hoje, 500 mil pessoas estão presas
na China, sem acusação formal ou julgamento. Em janeiro do ano passado, a
lei foi alterada para que a última palavra sobre pena de morte seja da Suprema Corte, mas, mesmo assim, a China
continua sendo o país com o maior nú-
mero de execuções. Não há números
oficiais, o que dificulta tudo, mas a
Anistia, baseando-se no que é revelado
pela imprensa, estima que, em 2007,
470 pessoas tenham sido executadas e
1.860 aguardavam execução. No ano
anterior, tinham sido 1.010 mortos e
2.790 no corredor da morte. A Anistia
cita, porém, estudos feitos pelo professor de Direito Penal, Liv Renwen, segundo os quais a China executa 8 mil
pessoas anualmente. E, o que é pior: 68
crimes são passíveis de punição com a
morte, entre eles os chamados crimes
não-violentos, como fraude fiscal e
corrupção. Com a agravante de que os
julgamentos são sumários, sem dar ao
réu amplo direito de defesa.
Não é só. Ainda está em pleno vigor
na China o bizarro processo de "reeducação pelo trabalho": a polícia, sem
acusação formal, julgamento ou monitoramento da Justiça, pode prender,
por até três anos prorrogáveis por
mais um, qualquer pessoa suspeita de
ter cometido crimes considerados leves. Elas são confinadas em institui-
ções cujo objetivo é "reeducá-las",
obrigando-as a trabalhos forçados.
Não preciso também lembrar que a
China não sabe o que é liberdade de
imprensa, ali só circulam as informa-
ções que os censores deixam passar:
até mesmo a internet, com 162 milhões de usuários, é ferreamente controlada, fazendo a China famosa por
ter construído o mais poderoso e sofisticado "firewall do mundo".
E o poderio militar chinês? Segundo
o "New York Times" de sábado, o pró-
prio Pentágono estima que as Forças
Armadas da China tenham hoje mais
recursos (dinheiro) à mão do que qualquer outro país, com a única exceção
dos próprios Estados Unidos. A leitura
de "O poderio militar da República Popular da China", um relatório anual
que o Pentágono produz para o Congresso americano, é de impressionar.
De 1996 a 2006, segundo dados oficiais,
a China aumentou o seu orçamento militar a taxas de 11,8% ao ano, já descontada a inflação, muito acima, portanto,
do crescimento anual do PIB no mesmo período (9,2%). Oficialmente, o or-
çamento militar chinês de 2007, da ordem de US$ 45 bi, teve um aumento de
17,8% em relação a 2006. O que preocupa é que essas cifras oficiais não incluem compras no exterior, investimentos em pesquisa e desenvolvimento (leia-se tecnologia) e equipamentos
para as forças paramilitares. Os serviços secretos americanos estimam que,
em 2007, os gastos militares reais dos
chineses tenham sido da ordem de US$
85 bi a US$ 125 bi, uma fortuna. Para
comparar, o orçamento para 2008 das
Forças Armadas do Brasil, essa potência emergente de que todos nos orgulhamos, é de apenas US$ 6 bi. Graças
ao embargo europeu à venda de armas
para a China, os maiores fornecedores
do país são Rússia, Israel e Ucrânia,
mas mesmo estes países não vendem
o que têm de mais sofisticado. Segundo o Pentágono, isso não tranqüiliza,
porque, nos últimos anos, graças à
abundância de recursos, a China investiu pesadamente em tecnologia pró-
pria. E está colhendo os frutos. Outro
estudo, "O Poder Militar Chinês", feito
por uma força-tarefa composta por dezenas de especialistas capitaneados
por Harold Brown, secretário de Defesa de Carter, é mais otimista: diz que a
China ainda está vinte anos atrás dos
EUA em termos de poder ofensivo, e
que os EUA podem manter essa distância com uma condição: que continuem
investindo em armas. Corrida armamentista à vista?
O.k., vou ficar com os olhos grudados na TV, vou torcer por nossos atletas, as Olimpíadas são um show e merecem ser prestigiadas. Mas eu me
pergunto se o COI não foi leniente demais dando a Pequim a honra de sediar os jogos. A democracia é um valor absoluto e universal, não devia haver espírito olímpico capaz de negligenciá-la. Na cerimônia de abertura, a
China contou a sua história milenar,
omitindo a tragédia comunista. Mas,
na cena da bandeira, deixou-se trair:
aqueles soldados empertigados deram muito bem o recado.