Alguns leitores me perguntam
como concilio meu entusiasmo pela candidatura de Obama e minhas posições sobre
a guerra no Iraque (Obama é radicalmente contra a decisão de invadir o
Iraque e eu, em artigos e em meu livro
"Sobre o Islã", disse que a decisão era
mais do que justificável). Outros,
acostumados ao enfoque com que
discuto os temas, sentem-se intrigados sobre como posso nutrir simpatia
por candidaturas do Partido Democrata, visto pelos conservadores americanos como liberais demais (liberais na concepção americana, "esquerdistas" na nossa).
Jonathan Freeland, do "The Guardian", escreveu no "Estadão" que era
moda dizer em 2000 que Bush e Al Gore eram gêmeos ideológicos: "Agora
sabemos à nossa custa o quanto isso
estava errado." Essa afirmação, porém, não faz sentido: é 100% impossí-
vel saber como teria sido um governo
Al Gore porque Al Gore jamais foi presidente (e, diga-se, os democratas deram apoio maciço à resolução que
aprovou o uso da força contra o Iraque). Para o que interessa, democratas e republicanos comungam dos
mesmos valores, o que torna as diferenças entre eles apenas sutis: ambos
são comprometidos até a raiz dos cabelos com as liberdades do indivíduo,
a livre iniciativa, a democracia, empenham-se pela defesa dos direitos humanos, pela qualidade de vida de
seus cidadãos e acreditam no empreendedorismo como força motriz de
uma sociedade. Está certo, os democratas são mais intervencionistas e
gastadores e os republicanos, no geral, mais afeitos a desregulamenta-
ções e a um estado fiscalmente mais
responsável. Mas não chega a surpreender que Bill Clinton, um democrata,
tenha deixado um superávit fiscal de
US$ 230 bilhões e que George Bush,
um republicano, legue ao seu sucessor um déficit estimado hoje em US$
400 bi. Democratas ou republicanos,
ninguém a rigor pode ser chamado
" e s q u e rd a " .
Um exemplo é a discussão em torno da "universalização dos serviços
de saúde". Hillary acusa o plano de
Obama de não levar à universaliza-
ção. Mas chega a ser engraçado o que
eles chamam de universalização. O
que Hillary e Obama propõem é que
os planos de saúde, todos pagos, sejam acessíveis. Se o cidadão já tiver
um plano e estiver satisfeito com ele,
ótimo. Se não estiver ou não tiver dinheiro para um, terá a opção de contratar um plano, público ou privado,
mais barato. Obama não torna obrigatória a compra desse plano, acreditando que, se eles forem baratos, todos que quiserem poderão adquirilos. Hillary tornará os planos compulsórios, mas promete que o custo não
poderá exceder certo percentual da
renda de cada cidadão: o que exceder
será devolvido quando todos fizerem
a declaração do IR. Ou seja, ninguém
pensa em agigantar o sistema público,
como França, Inglaterra ou Canadá,
para que o Estado dê atendimento
universal e gratuito (e, portanto, com
precariedades). O que se quer é que
todos comprem um plano de saúde.
Esquerda, isso?
Sobre o Iraque, de fato Obama manifestou-se contra a invasão antes da
guerra e, agora que todos os democratas parecem concordar com ele, é
natural que grite ainda mais que a invasão foi um erro. Mas o que ele propõe? Todos prestam atenção quando
ele diz que tirará as tropas do Iraque,
mas poucos notam que ele garante
que deixará lá soldados em número
suficiente para combater a al-Qaeda.
Se é assim, qual a objeção? Obama é
também ousado quando propõe o aumento de tropas no Afeganistão para
derrotar de vez o Talibã, coisa que
Bush nem se arrisca a defender por
falta de condições políticas. E ousa
ainda mais quando expõe seus planos
para o Paquistão. Ele disse: "Se tivermos informações sobre alvos terroristas de grande importância e o presidente Musharraf não agir, nós agiremos." Em outras palavras, o homem
admite desfechar um ataque no Paquistão sem pedir licença, o que provocou protestos veementes dos paquistaneses e de seus concorrentes
na disputa. Hillary disse: "Você pode
pensar grande, mas se estiver disputando a Presidência dos EUA não deve
dizer sempre tudo o que pensa, porque isso pode ter conseqüência pelo
mundo." Obama defendeu-se diplomaticamente: "Se o presidente
Musharraf não puder agir, então nós
teremos de agir. Isso é o senso comum." Outro ponto que chama a aten-
ção é que, ao contrário de Bush e Hillary, Obama se dispõe a sentar para
negociar diretamente com o Irã, a Sí-
ria e a Coréia do Norte, porque não
acha certo que os EUA terceirizem a
sua diplomacia. Hillary disse que essa
postura é naïf, e talvez seja mesmo,
mas que mal há nisso? Na pior das hipóteses, quando ouvir de Ahmadinejad que os EUA cheiram a enxofre, as
negociações serão encerradas (na
melhor, menos uma guerra à vista). O
importante é frisar que Obama quer
aumentar o número de soldados no
Afeganistão, deixar soldados no Iraque para combater a al-Qaeda e combater os totalitários do Islã até mesmo no Paquistão, um bom começo.
O problema é que Obama deverá
deixar isso bem claro aos eleitores.
Em 2004, disseram que a vitória de
Bush se deveu à força da direita religiosa, mas, na época, eu mostrei que
os números saídos das urnas provavam que Bush vencera a eleição por
causa da guerra. A atual disputa entre
republicanos mostra que isso também é verdade hoje. Agora como antes, se o fator decisivo na eleição fosse o fervor religioso, Mitt Romney, um
mórmon, e Mike Huckabee, ex-pastor
batista, estariam na frente, mas quem
levou a melhor foi John McCain, um
moderado, acusado de ser pouco conservador, entre outras coisas, justamente por guardar distância do fundamentalismo religioso. O que ele
tem de forte? Não somente apoiar a
guerra do Iraque, mas dizer que só
sairá de lá com a vitória, mesmo que
isso dure cem anos.
Caso vingue como candidato, o desafio de Obama será mostrar para os
americanos, não somente que ele foi
contra a guerra do Iraque, mas que
está comprometido com a derrota
dos inimigos dos EUA e que sabe como fazê-lo.