"Esquerda?", O Globo, 19/02/2008 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Esquerda?", O Globo, 19/02/2008

Alguns leitores me perguntam como concilio meu entusiasmo pela candidatura de Obama e minhas posições sobre a guerra no Iraque (Obama é radicalmente contra a decisão de invadir o Iraque e eu, em artigos e em meu livro "Sobre o Islã", disse que a decisão era mais do que justificável). Outros, acostumados ao enfoque com que discuto os temas, sentem-se intrigados sobre como posso nutrir simpatia por candidaturas do Partido Democrata, visto pelos conservadores americanos como liberais demais (liberais na concepção americana, "esquerdistas" na nossa).

Jonathan Freeland, do "The Guardian", escreveu no "Estadão" que era moda dizer em 2000 que Bush e Al Gore eram gêmeos ideológicos: "Agora sabemos à nossa custa o quanto isso estava errado." Essa afirmação, porém, não faz sentido: é 100% impossí- vel saber como teria sido um governo Al Gore porque Al Gore jamais foi presidente (e, diga-se, os democratas deram apoio maciço à resolução que aprovou o uso da força contra o Iraque). Para o que interessa, democratas e republicanos comungam dos mesmos valores, o que torna as diferenças entre eles apenas sutis: ambos são comprometidos até a raiz dos cabelos com as liberdades do indivíduo, a livre iniciativa, a democracia, empenham-se pela defesa dos direitos humanos, pela qualidade de vida de seus cidadãos e acreditam no empreendedorismo como força motriz de uma sociedade. Está certo, os democratas são mais intervencionistas e gastadores e os republicanos, no geral, mais afeitos a desregulamenta- ções e a um estado fiscalmente mais responsável. Mas não chega a surpreender que Bill Clinton, um democrata, tenha deixado um superávit fiscal de US$ 230 bilhões e que George Bush, um republicano, legue ao seu sucessor um déficit estimado hoje em US$ 400 bi. Democratas ou republicanos, ninguém a rigor pode ser chamado " e s q u e rd a " .

Um exemplo é a discussão em torno da "universalização dos serviços de saúde". Hillary acusa o plano de Obama de não levar à universaliza- ção. Mas chega a ser engraçado o que eles chamam de universalização. O que Hillary e Obama propõem é que os planos de saúde, todos pagos, sejam acessíveis. Se o cidadão já tiver um plano e estiver satisfeito com ele, ótimo. Se não estiver ou não tiver dinheiro para um, terá a opção de contratar um plano, público ou privado, mais barato. Obama não torna obrigatória a compra desse plano, acreditando que, se eles forem baratos, todos que quiserem poderão adquirilos. Hillary tornará os planos compulsórios, mas promete que o custo não poderá exceder certo percentual da renda de cada cidadão: o que exceder será devolvido quando todos fizerem a declaração do IR. Ou seja, ninguém pensa em agigantar o sistema público, como França, Inglaterra ou Canadá, para que o Estado dê atendimento universal e gratuito (e, portanto, com precariedades). O que se quer é que todos comprem um plano de saúde. Esquerda, isso?

Sobre o Iraque, de fato Obama manifestou-se contra a invasão antes da guerra e, agora que todos os democratas parecem concordar com ele, é natural que grite ainda mais que a invasão foi um erro. Mas o que ele propõe? Todos prestam atenção quando ele diz que tirará as tropas do Iraque, mas poucos notam que ele garante que deixará lá soldados em número suficiente para combater a al-Qaeda. Se é assim, qual a objeção? Obama é também ousado quando propõe o aumento de tropas no Afeganistão para derrotar de vez o Talibã, coisa que Bush nem se arrisca a defender por falta de condições políticas. E ousa ainda mais quando expõe seus planos para o Paquistão. Ele disse: "Se tivermos informações sobre alvos terroristas de grande importância e o presidente Musharraf não agir, nós agiremos." Em outras palavras, o homem admite desfechar um ataque no Paquistão sem pedir licença, o que provocou protestos veementes dos paquistaneses e de seus concorrentes na disputa. Hillary disse: "Você pode pensar grande, mas se estiver disputando a Presidência dos EUA não deve dizer sempre tudo o que pensa, porque isso pode ter conseqüência pelo mundo." Obama defendeu-se diplomaticamente: "Se o presidente Musharraf não puder agir, então nós teremos de agir. Isso é o senso comum." Outro ponto que chama a aten- ção é que, ao contrário de Bush e Hillary, Obama se dispõe a sentar para negociar diretamente com o Irã, a Sí- ria e a Coréia do Norte, porque não acha certo que os EUA terceirizem a sua diplomacia. Hillary disse que essa postura é naïf, e talvez seja mesmo, mas que mal há nisso? Na pior das hipóteses, quando ouvir de Ahmadinejad que os EUA cheiram a enxofre, as negociações serão encerradas (na melhor, menos uma guerra à vista). O importante é frisar que Obama quer aumentar o número de soldados no Afeganistão, deixar soldados no Iraque para combater a al-Qaeda e combater os totalitários do Islã até mesmo no Paquistão, um bom começo.

O problema é que Obama deverá deixar isso bem claro aos eleitores. Em 2004, disseram que a vitória de Bush se deveu à força da direita religiosa, mas, na época, eu mostrei que os números saídos das urnas provavam que Bush vencera a eleição por causa da guerra. A atual disputa entre republicanos mostra que isso também é verdade hoje. Agora como antes, se o fator decisivo na eleição fosse o fervor religioso, Mitt Romney, um mórmon, e Mike Huckabee, ex-pastor batista, estariam na frente, mas quem levou a melhor foi John McCain, um moderado, acusado de ser pouco conservador, entre outras coisas, justamente por guardar distância do fundamentalismo religioso. O que ele tem de forte? Não somente apoiar a guerra do Iraque, mas dizer que só sairá de lá com a vitória, mesmo que isso dure cem anos.

Caso vingue como candidato, o desafio de Obama será mostrar para os americanos, não somente que ele foi contra a guerra do Iraque, mas que está comprometido com a derrota dos inimigos dos EUA e que sabe como fazê-lo.