A
maior apreensão era a
Linha Vermelha. A viagem caiu no dia 3 de janeiro, ainda sob o impacto dos ataques no Rio. Por esse motivo, mesmo o vôo sendo às
23h, eu, minha mulher, Patrícia, e
minhas enteadas, Alice, de 15
anos, e Sofia, de 13, saímos de casa às 19h30m. Quando deixamos
para trás a Perimetral, disse ao
motorista: "Um perigo já passou."
Ele estava confiante: "Nada vai
acontecer." Tinha razão: chegamos inteiros, eu decepcionado comigo próprio por ser um carioca
com medo da Linha Vermelha.
Percebi logo que o meu medo
deveria ser outro. No check-in, a
pergunta já esperada: "Vocês têm
autorização do pai das meninas
para viajar?" Pouco antes de sairmos de casa, lembramos que nos
esquecêramos de fazer a autorização. Telefonamos para a agência de viagem e fomos informados de que, sem o papel com firma reconhecida, o pai teria de
autorizar o embarque pessoalmente. Antônio, superbom pai,
não se negou a colaborar. O funcionário da companhia aérea interrompeu o check-in e nos recomendou que procurássemos a
Polícia Federal para saber se
uma autorização ao vivo e em cores seria aceita.
Um policial já estava dando explicações a um grupo de pais aflitos. "Só viaja com autorização por
escrito e com firma reconhecida."
Não achei isso possível: "Mas o
pai virá pessoalmente, com todos
os documentos e dará a autorização!" O policial, arrogante, decretou: "Sem firma reconhecida, as meninas não viajam." Atônito, perguntei se havia algum cartório aberto, e
ele me olhou como se eu fosse um
idiota: "Cartórios fecham às cinco. Havia um plantão do juizado de menores
no Sambódromo, mas eles fizeram a
sacanagem de fechar."
Num posto do juizado, uma funcionária confirmava que nada poderia
ser feito: não havia plantão. Liguei para dois tabeliães, e eles explicaram
que, com o cartório fechado, nada era
possível. A viagem parecia ter terminado antes de começar. E a culpa não
era da Linha Vermelha. Quando Antônio chegou, voltou ao policial, mas recebeu dele a mesma
resposta. Por sorte,
uma senhora ouviu a
conversa e nos deu o
endereço no Centro onde haveria um plantão.
"Lá, vocês vão conseguir", disse, dando nova
explicação: portaria baixada pelo Juizado de
Menores no dia anterior, sem publicidade,
mudara o regulamento,
exigindo uma autorização de um juiz para que
algum menor viaje para o exterior na
ausência de um dos pais.
Eram 21h10m. Deixamos as malas
com nosso agente de viagem, a quem
pedimos ajuda, e rumamos para o
Centro em dois táxis. Chegamos às
21h30m. Depois de entrarmos, um a
um, através de duas portas de vidro
automáticas, tivemos de mostrar as
carteiras de identidade, cujos dados
foram anotados lentamente. Para
quem tem vôo marcado para as 23h,
é um suplício. Os três guardas já sabiam o que queríamos: não éramos
os primeiros, não seríamos os últimos. Uma família já estava sendo
atendida, sem mais chance de voar, porque perdera o vôo. "Tudo leva
meia hora", disse um dos guardas,
acrescentando, diante de nossa perplexidade: "É pouco tempo. Antes
eram mais de quatro horas."
Imploramos (esse é o termo) para
que ele explicasse a quem de direito
que o nosso caso era urgente e simples: poderíamos voar se tudo fosse
rápido, e o pai e a mãe estavam ali, de
acordo. Mas os guardas disseram
que não poderiam incomodar o comissário. Depois de pedirmos umas
dez vezes, um dos guardas fez sinal
para que o comissário nos recebesse. Patrícia e Antônio explicaram a situação e o comissário
mentiu: "Em cinco minutos, tudo estará resolvido." Puxou dois
formulários enormes,
um para cada criança,
aos quais deveriam ser
anexados passaportes
e passagens. Tudo preenchido, o comissário
deu a notícia angustiante: o caso seria analisado pelo promotor, que
redigiria um parecer a
ser acolhido ou não pela juíza. Parecer? Mas se os pais estão de acordo! Minha mulher implorou que ele avisasse ao promotor
que, se fosse ágil, poderíamos embarcar. O agente de viagem me dizia
ao telefone que estava tendo a boa
vontade da companhia aérea, mas tínhamos de sair de lá em instantes. O
comissário, risonho, dizia: "Não posso incomodar o promotor."
Antônio e Patrícia acharam um outro funcionário, que se dispôs a conversar com o promotor. Eram já 22h,
e nos sentimos esperançosos. Mas o
jantar do funcionário bonzinho (uma
quentinha e uma garrafa pet de CocaCola) chegou, e ele desapareceu por uma porta. Instantes depois, Patrícia
conseguiu avistá-lo por uma fresta,
jantando, e implorou novamente ajuda. Ele foi ao promotor e voltou dizendo: "Está quase terminando o parecer." Eram 22h10m, e estávamos
pessimistas. Não viajar seria um
grande prejuízo: hotéis pagos e vôos
lotados até a semana seguinte.
De repente, o promotor apareceu
para, muito bondosamente (deixou
isso claro), tirar dúvidas. Por que as
meninas tinham o sobrenome do pai
e da mãe? Por que a mãe não tinha o
sobrenome do pai das meninas? Por
que o pai se declarou divorciado, enquanto a mãe se dizia casada? Antô-
nio foi sucinto: "Porque elas são nossas filhas. Porque sou divorciado.
Porque ela se casou de novo." O promotor teve a coragem de dizer: "Imaginei, mas me aconselhei com a juíza
e achei por bem perguntar."
Deu as costas e sumiu. Eram
22h20m. Cinco minutos depois, um
funcionário trouxe a autorização,
mas não era o fim. Era preciso assinar todas as vias e tirar cópias das
identidades, das passagens e dos
passaportes. Por que não fizeram isso antes, jamais saberemos.
Às 22h30m, uma hora depois de ali
chegarmos, saímos correndo. O
agente de viagem disse que, àquela
hora, só com um milagre embarcaríamos. Os motoristas de táxi que nos
esperavam e a companhia aérea operaram o milagre: cruzamos a Perimetral e a Linha Vermelha sem pensar
nos riscos. Fomos os últimos passageiros a embarcar. Eram 23h10m.
Por que conto tudo isso? Para
mostrar a impotência dos cidadãos
diante de um Estado, às vezes forte,
quase sempre inepto.