A
Câmara está para votar uma
lei cujos efeitos são os opostos do que anuncia seu nome: "Estatuto da Igualdade
Racial". O que seus autores estabelecem no projeto é um "Estatuto da Diferença Racial", pois dividem, autocraticamente, os brasileiros em duas
"raças" estanques: negros e brancos.
O estatuto, na sua essência, é muito
similar às leis segregacionistas em vigor nos Estados Unidos antes da vitória da luta pelos direitos civis e às
leis sul-africanas ao tempo do Apartheid. Não importa que o objetivo explícito aqui seja "promover" a "raça"
negra; importa que, para fazê-lo, o estatuto olha os brasileiros, vê dois grupos estanques, impõe-lhes a afiliação
a uma de duas "raças", separa-os,
conta-os e concede privilégios a um e
não ao outro. Não há igualdade nisso,
apenas discriminação.
Os Estados Unidos sempre estiveram sob o comando da Constituição,
e esta sempre declarou que todos os
homens são iguais. Como explicar, então, que, por tantos anos, tenham estado em vigor leis segregacionistas?
Porque, lá, construíram-se leis como
as que querem construir aqui: cidadãos iguais, sim, mas separados, cada
um do seu lado "para o seu próprio
bem". A mistura era vista com horror,
como algo que enfraqueceria tanto os
negros quanto os brancos, daí a segregação. No Apartheid da África do
Sul, o discurso era o mesmo. O mestiço era considerado um pária, algo
que já começam a repetir no Brasil,
segundo denúncia de Demétrio Magnoli aqui mesmo nesta página. Esse
estatuto, em que pesem as intenções
em direção oposta, tem exatamente a
mesma essência. O resultado será
sempre o pior possível.
Vou dar apenas dois, de muitos
exemplos. O projeto determina que
todas as informações do SUS sejam
desagregadas por "raça, cor, etnia e
gênero" (vejam a obsessão, "raça, cor
e etnia"), para que as doenças da população negra sejam mais bem entendidas e combatidas. Ocorre que a
ciência já provou que não existem
doenças vinculadas à cor da pele da
pessoa: não existe doença de branco,
de negro, de moreno.
Existem doenças que,
geneticamente, estão
mais presentes em grupamentos humanos, especialmente entr e
aqueles que não se misturam. É só pensar na
África: ali, a imensa
maioria é negra, mas a
incidência de certas
doenças varia de região
para região. Algumas
tribos, que não se casam com gente de fora,
perpetuam certa doença que não
ocorre em outras tribos, igualmente
negras. Da mesma forma e pelos mesmos motivos, num país onde a segregação foi muito severa, talvez seja
possível encontrar incidência maior
de uma doença entre negros. Mas, em
países abençoadamente miscigenados, como o nosso, isso simplesmente não existe.
Como todos sabem, o SUS é procurado mais que preponderantemente
por pessoas pobres, brancas ou negras ou morenas, ou amarelas. Qualquer estatística produzida pelo SUS,
hoje, mostrará quais as doenças que
afetam mais os pobres, e essa incidência será relacionada corretamente à pobreza. Se o estatuto for aprovado, haverá uma distorção enorme:
como os negros são a maioria entre
os pobres, as doenças que acometem
mais os pobres em geral, pelas péssimas condições em que vivem, serão
vistas como doenças dos negros, de
qualquer renda. A crença dos que defendem o estatuto é que, com esse dado na mão, os negros poderão se beneficiar de políticas de prevenção.
Não tardarão a aparecer, contudo, racistas em algumas empresas evitando, disfarçadamente, a contratação de negros porque,
supostamente, eles são
mais vulneráveis a tais
e tais doenças. Será o
efeito oposto do que
prevê o estatuto.
Outro exemplo: o
projeto também impõe
que toda criança declare a sua cor e a sua "raça" em todos os instrumentos de coleta do
Censo Escolar (válido para escolas
públicas e privadas). A ciência já
mais do que provou que todos os seres humanos, independentemente da
cor da pele, têm o mesmo potencial
de aprendizado, ou, dito de uma maneira mais clara, são igualmente inteligentes. Com essa medida, o que os
proponentes do estatuto desejam é,
ao final de um período, mostrar o desempenho de alunos negros e brancos. Como, novamente, os negros são
a maioria entre os pobres e como os
pobres estudam nas piores escolas, é
provável que os negros apresentem
um desempenho pior, o que será exibido, não como resultado da penúria
por que passam os pobres em geral
(negros ou brancos), mas do racismo.
A crença dos proponentes é que os
dados tornarão possível uma ajuda
maior aos negros, mas o efeito prático é que os negros, de todas as faixas
de renda, ganharão mais um rótulo, a
ser explorado pelos racistas abjetos
que existem em toda parte.
Estão criando um monstro.
Aos deputados que vão votar o projeto, especialmente àqueles que ainda não se decidiram, eu lembro: a
ciência já provou que raças não existem, nós seres humanos somos incrivelmente iguais, apesar da diferença
de nossos tons de pele; reforçar a noção de "raça" só aumenta o racismo;
todas as políticas devem ser voltadas
à promoção dos pobres em geral, negros, brancos, pardos, amarelos,
qualquer um; nossa maior contribuição ao mundo, até aqui, foi a exaltação da nossa miscigenação, algo realmente inédito na história dos povos.
Mudar isso é mudar a essência de
nossa nação. Para pior, muito pior.
No século XXI, nossa visão de mundo tem de ser pós-racial: lutar com todas as forças contra o racismo, não
para enaltecer as "raças", que não
existem. Mas para que todos possam
ser vistos apenas pelo que são: homens e mulheres. Alguém não deve
ser ajudado porque é dessa ou daquela cor ou "raça", mas simplesmente
porque precisa.