Todos nós nos encantamos diante
dos enormes avanços da ciência
e com o que os cientistas aprenderam sobre o Universo e nosso
lugar nele. A ciência sabe do que os planetas, as estrelas e nós somos compostos
quimicamente, qual a química da vida e
os mecanismos da genética. Conhece o
processo pelo qual o sistema solar e a
Terra foram formados, a idade da Terra,
da vida na Terra, a idade do Sol e o seu
futuro desenvolvimento, nosso lugar na
Via Láctea, quantas outras galáxias existem e a taxa de expansão do Universo.
E, no entanto, diante da pergunta fundamental — quem somos, de onde viemos e
para onde vamos — o homem moderno
continua tão ignorante quanto os nossos
ancestrais dos tempos da caverna. Mas
com as mesmas necessidades de certezas.
Os antropólogos se dedicam a estudar
há tempos o chamado pensamento mítico
das sociedades primitivas. Em todas elas, o
homem construiu histórias capazes de explicar a origem do mundo e a sua própria.
O mito de que falam os antropólogos, porém, nada tem a ver com o significado da
palavra hoje: fábula, invenção ou modelo
exemplar. Trata-se de ver o mito como uma
"realidade". Quando uma tribo australiana
revive o mito da origem do mundo, um observador pode imaginar que está presenciando uma "encenação", uma "representação teatral". Mas está enganado: os indígenas estão vivendo aquele momento como
nos tempos imemoriais, estão "reatualizando as emoções", estão experimentando novamente a criação do mundo. Por isso o mito é uma "realidade".
Mesmo entre nós, o pensamento mítico
sobrevive, e cito o exemplo do réveillon.
Sabemos que o nosso calendário é uma
das muitas convenções possíveis: poderíamos ter escolhido qualquer outro ponto da trajetória da Terra em torno do Sol e
dizer: aqui começa o ano. E, no entanto,
quando estamos reunidos à meia noite do
dia 31, temos a nítida certeza de que um
novo tempo começa, experimentamos
novamente a criação do mundo: "Ano Novo, vida nova." Vivemos aquilo como uma
realidade concreta, embora seja apenas
uma convenção, um mito.
Muitos dirão que no Ocidente as manifestações do pensamento mítico são cada
vez mais raras, ficando o réveillon como
um pálido exemplo. Seríamos uma sociedade imbuída das certezas científicas.
Mas é justamente aí aonde quero chegar.
A sociedade ocidental nos últimos séculos foi pouco a pouco substituindo a crença no fenômeno religioso, a crença em
Deus, pela crença na ciência. Mas, nesse
caminho, sem se dar conta, substituiu um
pelo outro, mantendo as mesmas estruturas de pensamento. Não me refiro aos
cientistas, mas a nós, os leigos.
Hoje, sem que ninguém saiba ao certo o
que venha a ser o Big Bang, qualquer um
nas ruas que não seja "anacronicamente
religioso" é capaz de afirmar que o mundo surgiu de uma grande explosão. Essa
mesma pessoa dirá também que o homem veio do macaco e que foi Darwin
quem descobriu isso. Todos nós temos
certezas e mais certezas, quando o assunto é ciência. Nós "acreditamos" na ciência, como antes acreditávamos em Deus.
Um cientista poderia me dizer que a
credibilidade da ciência (e não na ciência) foi instituída devido aos seus sucessos: curas de doenças, desenvolvimentos
de tecnologias tanto boas quanto ruins.
Quando alguém voa em um avião, fala
num celular, toma um antibiótico ou come soja transgênica, a coisa torna-se palpável: a "fé" na ciência pode ser pega nas
mãos. É o que chamam de "ver para crer"
em vez do "crer para ver" da religião.
Não tenho dúvidas sobre isso, mas o
olhar que o leigo tem da ciência não é o
olhar dos cientistas. Enquanto a ciência deixou para traz o positivismo, nós, os leigos,
tratamos de incorporá-lo ao nosso dia-a-dia.
E, sem que conheçamos nada a fundo, acreditamos em tudo. Os cientistas mantêm boa
distância desse tipo de atitude. Sabem que
tudo o que conseguem é dar a melhor explicação para os fatos de acordo com o conhecimento até aqui disponível. Mas sabem
também que essa explicação "científica" geralmente é logo superada por outra, que às
vezes a negará totalmente. Para os antigos,
era o Sol que girava em torno da Terra, sendo inclusive possível constatar o fenômeno
a olho nu. A Física de Newton era "a" verdade, até que Einstein mostrou que ela não
era suficiente para explicar as leis do Universo. Lamarck fez muito sucesso dizendo
que as girafas ficaram com o pescoço comprido de tanto o esticarem, até que Darwin
mostrou que somente as girafas que tinham
pescoço comprido, e por isso se alimentavam melhor, é que sobreviveram.
Hoje, no entanto, o Big Bang está para
nós assim como muitos mitos de cosmogonia estavam para sociedades ditas primitivas. É ciência, mas é apreendido por
nós como mito, no sentido antropológico
do termo. Como realidade.
Se eu disser para qualquer amigo que o
Big Bang é "uma" teoria, a que melhor explica hoje os fenômenos que envolvem o
macrocosmo, mas que pode estar errada,
vou ser tachado de doido ou prepotente
ou, melhor, os dois. A Física Quântica,
que explica o que acontece no microcosmo do átomo, é vista por nós como um
dado da realidade como outro qualquer,
muito embora ela seja de tal forma complexa que poucos de nós podemos apreender-lhe o sentido. E todos nós ficamos
de queixo caído quando lemos que as leis
que explicam o macrocosmo não são
compatíveis com as leis que regem o microcosmo, como deveriam ser, e que, portanto, a ciência ainda está à cata de uma
teoria geral que una tudo. Está à cata do
que nós, leigos, chamamos de verdade.
Algo distante.
No livro "Deus e a Ciência", dois físicos,
Grichka e Igor Bogdanov, trocam idéias
com o filósofo católico Jean Guitton. Em
dado momento, eles dizem que toda a realidade repousa sobre um pequeno número
de constantes cosmológicas: gravitação,
zero absoluto, velocidade da luz, força nuclear, força eletromagnética etc. "Se só
uma dessas constantes tivesse sido minimamente modificada, então o Universo —
ao menos tal como o conhecemos — não
poderia ter aparecido", eles dizem. Prosseguem, contando que o resultado seria espantoso se os mais poderosos computadores fossem programados para calcular a
probabilidade de que as condições para o
surgimento do Universo tivessem se dado
no tempo certo e na intensidade certa: "As
leis da probabilidade indicam que esses
computadores deveriam calcular durante
bilhões de bilhões de bilhões de anosisto é, durante um tempo quase infinito
até que pudesse aparecer uma combinação de números comparável àquela que
permitiu a eclosão do Universo."
Mais adiante, os três lembram que, para
que a vida surgisse na Terra, foi preciso
que, ao longo de bilhões de anos, um milhar de enzimas se aproximasse umas das
outras, até que ocorresse a única ordena-
ção entre elas capaz de gerar uma célula
viva. Os biólogos calcularam a probabilidade de que essa única ordenação certa
viesse a ocorrer: a probabilidade é da ordem de 10 seguido de mil zeros (um nú-
mero indizível) contra um. Não, não se trata de uma chance em um milhão, ou uma
chance em um trilhão, mas de uma chance
contra 10 seguido de mil zeros. "O que
equivale a dizer que a chance é nula", arremata um deles. E para que os aminoácidos se esbarrassem na ordem certa para
que se criasse uma molécula de RNA, os
biólogos calcularam que teria sido necessário que a natureza multiplicasse "às
apalpadelas" as tentativas durante pelo
menos 10 elevado a 15 anos. "Ou seja, durante cem mil vezes mais tempo que a idade total do nosso Universo."
É contar demais com a sorte, não?
Tudo isso para dizer que aqueles que
transformam a fé em Deus em fanatismo e
aqueles que acreditam na ciência como
em um deus fazem isso porque buscam
certezas. Vivem o mito como realidade.
Essa postura é muito diferente da verdadeira fé: ter fé é se sentir acolhido mesmo diante do mistério. E é também muito
diferente do verdadeiro espírito científico: fazer ciência é duvidar sempre.