"Nos últimos três meses,
os moradores deste
domicílio comeram
apenas alguns alimentos que ainda tinham porque o dinheiro acabou?"
Teve dificuldade para entender
pergunta tão mal formulada? Qualquer um teria. Mas ela faz parte do
suplemento sobre segurança alimentar da PNAD-2004, do IBGE. A pesquisa pretende avaliar "o acesso à alimentação de qualidade, em quantidade e regularidade adequada a um
padrão de vida satisfatório". Os pesquisadores foram a campo entre setembro e dezembro do ano passado,
e o custo do suplemento, R$ 2 milhões, foi pago pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). Não sou
adivinho, mas sei qual será o resultado, a ser divulgado em setembro: o
número de brasileiros expostos à insegurança alimentar severa será altíssimo. E o Bolsa Família estará de
novo plenamente justificado.
Para que o leitor comprove que a
pesquisa pode apresentar um falsopositivo, vou reproduzir aqui algumas perguntas da pesquisa e imaginar possíveis respostas:
• "Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio tiveram a
preocupação de que os alimentos
acabassem antes de poderem comprar ou receber mais comida?" "Sim",
diria o hipotético entrevistado, pensando nas duas caixas de biscoitos finos que a filha come toda semana e
que ele teme não ter mais dinheiro
para comprar na mesma quantidade.
• "Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio ficaram
sem dinheiro para ter uma alimentação saudável e variada?" "Sim", diria o entrevistado, acreditando que
a dieta alternada de carne ou ave ou
peixe, com feijão, arroz e salada,
que a sua família come todos os
dias, por ser repetitiva, é pouco saudável, quando na verdadeéarecomendada pelos nutricionistas.
• "Nos últimos três meses, algum
morador de 18 anos ou mais de idade diminuiu, alguma vez, a quantidade de alimentos nas refeições porque não havia dinheiro para comprar comida?" "Sim", diria o nosso
personagem, que, antes, comia uma
verdadeira "montanha" e ainda repetia, e, em função de restrições orçamentárias, passou a comer apenas a
"montanha", sem repeti-la.
• "Nos últimos três meses, algum
morador de 18 anos ou mais de idade, alguma vez, sentiu fome mas não
comeu porque não havia dinheiro
para comprar comida?" "Sim" seria a
resposta de alguém que, no fim da
tarde, deixasse de comer um sanduí-
che no McDonald's, porque o dinheiro está curto, sendo obrigado a matar a fome no jantar, em casa.
Das 36 perguntas, apenas três são
formuladas de maneira clara. Em
apenas uma dessas três, o manual
técnico do entrevistador afirma que
não se deve levar em conta óleo,
manteiga, sal, açúcar etc. Em todas
as outras, nada instrui o entrevistador sobre como esclarecer previamente o entrevistado para evitar as
distorções apontadas acima.
O IBGE, cuja excelência é inquestionável, e os técnicos do MDS fizeram, no entanto, todo o dever de casa. Antes de aplicar a pesquisa, avaliaram o questionário com especialistas e fizeram grupos de discussão
compostos pelo público-alvo para
testar o entendimento de algumas
palavras e conceitos ("alimentação
saudável", "alimento nutritivo", "dinheiro suficiente", "fome"). Fizeram
as modificações necessárias e, depois, aplicaram o questionário, como teste, em quatro cidades. O resultado, segundo o IBGE, foi positivo: a insegurança alimentar mais severa foi constatada entre os de mais
baixa renda. O questionário foi, assim, "validado" para aplicação nacional. Como de todo esse trabalho técnico resultaram perguntas tão mal
formuladas é algo que me intriga.
Contudo, mesmo se a redação
fosse perfeita, a pesquisa continuaria a ter pouco valor. O problema é
da própria metodologia, adotada
em muitos países. O questionário
brasileiro, por exemplo, foi inspirado no americano, que vem sendo
aplicado desde 1995. Embora nem
de longe apresente os vícios de redação do seu congênere brasileiro,
o americano gera o mesmo equívoco. Embora o órgão pesquisador advirta que nos EUA não haja a mesma
fome do "Terceiro Mundo", sua
crença é a de que o país sofra insegurança alimentar. Difícil conciliar
essa crença com a constatação de
que mesmo nas regiões mais pobres
das mais pobres cidades americanas é impossível achar pessoas que
não sejam gordas.
O maior programa americano de
combate à fome é o Cartão Alimentação ("Food Stamp Program"),
criado em 1939 e que passou por
muitas evoluções até se tornar permanente em 1964. Quem imagina
que o Fome Zero ou o Bolsa Família
sejam inéditos está, portanto, enganado. O programa distribui cartões
magnéticos (antes eram cupons),
utilizados para adquirir comida em
lojas credenciadas. Todos abaixo da
linha da pobreza têm direito a receber o benefício. São 21,3 milhões de
beneficiários, que recebem, em mé-
dia, US$ 80 per capita (o benefício
máximo para famílias de três pessoas é de US$ 393). O cartão alimentação é igual ao Bolsa Família, com
duas diferenças: aqui, o beneficiário
não precisa provar nada e, com o dinheiro, pode comprar o que quiser.
O Cartão Alimentação americano é
apenas um dos 15 programas de distribuição de alimentos nos EUA, ao
custo de US$ 41,6 bilhões ao ano.
Apesar disso, a última pesquisa
feita lá indica que 36,3 milhões de
americanos, incluindo 13,3 milhões
de crianças, vivem em lares com insegurança alimentar. Destes, 6,6 milhões de adultos e 3 milhões de
crianças vivem em lares onde pelo
menos uma pessoa passou fome
propriamente dita.
Se nem na nação mais próspera
do planeta, com os seus programas
assistenciais multimilionários, a insegurança alimentar foi resolvida, o
problema não é do país, mas do
conceito de insegurança alimentar.
Portanto, que os brasileiros não se
assustem em setembro: aqui o problema pode não ser também nosso,
mas da pesquisa.
PS: O Bolsa Família, com recursos bilionários, continua carecendo de transparência. O primeiro
perfil socioeconômico dos cadastrados mostrou-se incompatível
com o perfil do público-alvo. Prometeu-se para o meio do ano passado a divulgação de um novo perfil. Até agora, nada.