Numa conversa depois da
entrevista que concedeu a
Pedro Bial, o presidente
Lula me disse que gostaria
de contrapor argumentos às minhas críticas ao Bolsa Família. "Trata-se de um programa emergencial,
ele não foi desenhado para durar
para sempre", explicou o presidente, acrescentando que também ele
quer ver reduzido o número de beneficiários, mas apenas à medida
que menos gente esteja em condições precárias. "Mas é inegável que
aquele dinheiro é fundamental para
melhorar a vida daquelas pessoas",
emendou o presidente, dando como
exemplo a sua própria experiência
de menino retirante nordestino em
São Paulo, quando uma moeda de
"cinco tostões" era fundamental para a sobrevivência da família.
Eu lhe respondi que nada tinha
contra o programa em si, mas contra
a abrangência dele: não existem 11,2
milhões de famílias passando fome
no país. A resposta do presidente foi
objetiva: "Não posso discutir os nú-
meros do IBGE. Se os necessitados
forem menos, tanto melhor."
A origem da confusão talvez tenha sido o ponto de corte escolhido pelo governo para decidir quem
necessita ou não do dinheiro: R$
100,00 de renda familiar per capita.
Esse critério monetário pode ser
eficaz para definir quem é pobre,
mas não quem passa fome. A Pesquisa de Orçamento Familiar do IBGE já mostrou que a porcentagem
de indivíduos emagrecidos está em
4%, abaixo do limite máximo de 5%
considerado normal. Na Índia, esse
número salta para 50%. No Brasil, a
fome é residual, presente em alguns bolsões, e o número dos que
sofrem dela deve ser contado na
casa dos milhares e não dos milhões. Em síntese, nós somos pobres, mas não famintos.
Em 2003, no lançamento do Bolsa
Família, o governo anunciou como
meta atender a 11,2 milhões de famílias, aquelas que, segundo a
PNAD de 2001 (única então disponível), tinham renda familiar per capita igual ou inferior a R$ 100,00. Até
dezembro de 2004, o governo distribuiu o Bolsa Família para 6,5 milhões de famílias. E, mesmo assim,
ainda havia, em 2004, 10,5 milhões
de famílias com renda familiar per
capita igual ou inferior a R$ 100,00.
Ou seja, mesmo tendo
distribuído esse caminhão de dinheiro, o
estoque de pobres só
foi reduzido em 700
mil famílias. Por si só,
isso é um indício forte
de falta de foco: o dinheiro pode estar indo para quem tem
renda per capita s u p erior a R$ 100,00. Ou
seja, além de ir para
quem não tem fome, o
dinheiro está beneficiando quem, na definição do próprio governo, não é sequer pobre.
Falo em indício porque hoje é impossível saber com exatidão para
quem está indo o dinheiro do Bolsa
Família. Para que uma família se candidate ao benefício é preciso que ela
conste do Cadastro Único, criado em
2001 com o objetivo de identificar todas as famílias brasileiras abaixo da
linha de pobreza. Mas quem faz esse
cadastro? As prefeituras. De que modo? Como bem entendem. As pessoas preenchem um formulário e declaram a renda da família, sem que
precisem apresentar comprovação
(isso está previsto em lei). Se a famí-
lia tem renda per capita igual ou inferior a R$ 100,00, ela está apta a receber o benefício. O governo vem trabalhando junto às prefeituras para
melhorar a qualidade do cadastro,
mas, até aqui, tudo continua como
antes. Hoje, nada pode assegurar que
as famílias beneficiárias são de fato
as mais pobres.
Para agravar tudo isso, não há
qualquer instrumento estatístico
que possa mostrar ao governo se o
Bolsa Família está atingindo o alvo
certo. A Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (PNAD) não
traz pergunta específica alguma sobre rendimentos oriundos de programas sociais. Ao registrar a renda da
família, o pesquisador
está orientado a incluir o dinheiro do Bolsa Família numa rubrica chamada "outros
rendimentos", que inclui também dinheiro
vindo de aluguel, recebimento de juros e dividendos. Uma pequena salada. Como, porém, pobre, por defini-
ção, não recebe dinheiro de aluguel, nem
de juros, nem de dividendos, alguns pesquisadores têm
dito que é fácil ver nesta rubrica a
presença do Bolsa Família: se ela
cresceu entre os mais pobres, o dinheiro só pode ter vindo do Bolsa Família ou assemelhados. E, de fato, a
PNAD mostra que, para as faixas de
rendimento mais baixas, houve um
acentuado crescimento na participação da rubrica "outros rendimentos"
na renda total da família: para quem
tem renda per capita igual ou inferior
a R$ 100,00, em 2002, essa participa-
ção era de 3,7%; em 2003, subiu para
5% e, em 2004, pulou para 10,2%. Como a verba aplicada no Bolsa Família
cresceu de R$ 3,6 bi, em 2003, para
R$ 6,5 bi, em 2004, este aumento na
participação de "outros rendimentos" na renda total das famílias é um
indício de que o programa estaria
atingindo o alvo.
Uma análise mais atenta dos números mostra, porém, que essa não é a
única realidade: o vazamento de recursos é grande. Dividindo-se as famí-
lias em três faixas de rendimentos, verificaremos que o dinheiro alocado
em "outros rendimentos" dividido pelo número de pessoas de cada faixa é
muito parecido, quando devia ser
maior na faixa mais baixa. Nas famílias
com renda per capita de até R$ 100,00
o valor é de R$ 5,80; nas famílias com
renda per capita entre R$ 100,00 e R$
200,00 o valor é de R$ 5,40; e nas famílias com renda per capita entre R$
200,00 e R$ 300,00 o valor é de R$ 4,50.
Se somarmos os recursos declarados
em "outros rendimentos" nestas três
faixas, verificaremos que 40,7% deles
são apropriados pelas famílias com
renda per capita de até R$ 100,00;
38,2%, pelas famílias com renda per
capita entre R$ 100,00 e R$ 200,00; e
21,1%, pelas famílias com renda per
capita entre R$ 200,00 e R$ 300,00. Ou
seja, 59,3% dos recursos vão para famílias com renda per capita superior a
R$ 100,00. Um "vazamento" enorme.
Há quem diga que não há um problema. O Brasil é tão pobre que se alguém jogar dinheiro para o alto
quem o pegará no chão pode não ser
o mais pobre, mas certamente será
um pobre. Eu não penso assim. O
Brasil tem leis e elas devem ser respeitadas. Não é justo que os mais pobres fiquem sem os recursos e que os
menos pobres sejam beneficiados.
Há que se ter eficiência. Do contrário,
grandes somas de recursos estarão
indo para quem não precisa, enquanto falta dinheiro para educação, que
emancipa os pobres, e para investimentos em infra-estrutura, que prepara o país para o crescimento econômico e a geração de empregos.