Toda vez que o debate sobre as
favelas toma corpo surgem vozes querendo despertar sentimento de culpa entre aqueles
preocupados em buscar uma solução.
Devia ser o contrário. Culpa deviam sentir aqueles que acham genial a frase que
sempre repetem: "Favela não é problema, mas solução." Solução, para quem?
Se não há casas dignas, que os favelados se virem como puderem? Conviver
com a existência de favelas por tantos
anos, como se fosse um dado da natureza, é sinal de uma profunda elasticidade da ética. Que outra sociedade, tendo
atingido certo distanciamento da barbá-
rie, aceitaria ver concidadãos em situa-
ção de tanta indignidade? E o trágico é
que são os indivíduos preocupados
com o assunto que têm de levar lição de
moral daqueles que aceitam as favelas
como uma realidade imutável. Levam a
pecha de querer se "livrar" das favelas
quando, na verdade, o que desejam é livrar delas os favelados.
Não, os que desejam uma solução para a favela são aqueles que não acham
natural que seres humanos vivam em
condições tão precárias. São aqueles
que querem viver numa sociedade onde ninguém mais durma entre ratos e
esgoto. São aqueles que acham que todo ser humano merece uma vida digna,
não importando quão pobres sejam.
A solução não será fácil. É preciso
investir recursos de modo que bairros
populares dignos sejam construídos
com infra-estrutura de saneamento,
com escolas, com hospitais e, fundamentalmente, com transporte rápido
e barato. O que importa não é a distância em quilômetros dos centros de
trabalho, mas a distância em minutos.
Em todas as partes civilizadas do
mundo os menos favorecidos vivem
em bairros mais afastados das regiões
mais caras da cidade, mas estão a poucos minutos delas, graças a um sistema de transporte eficiente. Na cidade,
há cerca de um milhão de pessoas vivendo em favelas, o que apontaria para um déficit habitacional de 250 mil
moradias. É uma meta impossível?
No Rio, há terrenos fartos e com boa
estrutura ao longo de 40 quilômetros da
Avenida Brasil e na Zona Portuária. Tais
áreas já são servidas por trens, que, hoje, têm serviços melhores e grande capacidade ociosa. É preciso construir
bairros populares ali, que fujam do estigma dos conjuntos habitacionais de
antigamente, cuja monotonia arquitetô-
nica transformava tudo em depósitos
de gente. É preciso criar bairros com
cara de bairros, com prédios e casas diferentes, que tenham vida. É preciso investir na melhoria do transporte já existente e criar novos.
Um grande passo já foi dado. Depois
de 13 anos, o Congresso aprovou o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, que, entre outras medidas, dá ao administrador a possibilidade de rever políticas de zoneamento
sem burocracia, transformado antigas
zonas agrícolas ou industriais decadentes em zonas residenciais. O sistema cria também um fundo que, com
correlatos estaduais e municipais, destinará recursos (dinheiro, terrenos,
equipamentos urbanos, como escolas
e hospitais, estradas, ruas) para que
se possa investir em habitação e transporte. Claro, falta o essencial: dinheiro. O fundo federal, para dar a partida,
necessitaria de R$ 5 bilhões, e o má-
ximo que o governo aceitou investir
nele foram R$ 400 milhões. Da mesma
forma, no Rio, nem a prefeitura nem o
governo do estado se dispuseram a
criar os seus respectivos fundos.
Cesar Maia olha para as favelas e diz
que é radicalmente contra a remoção. E
mostra como solução o favela-bairro,
um programa de intenções maravilhosas, que desde 1993 vem sendo executado na cidade. Um período de 12 anos
é tempo suficiente, em qualquer parte
do mundo, para julgar se uma política
pública deu ou não resultado. Qualquer
carioca, olhando ao seu redor, observando como vivem os seus concidadãos nas favelas, sabe que o panorama
é fundamentalmente o mesmo, apesar
do programa.
A prefeitura lançou esse ano um livrete chamado "Favela-bairro, monitoramento e avaliação", com dados
dos censos de 1991 e 2000. Trata-se
de um estudo que comparou, naquele intervalo de tempo, os resultados
em 34 favelas atendidas pelo programa e a situação de outras 17, que
não foram beneficiadas por ele. O estudo chamou as favelas não atendidas de "grupos de controle". Entendo a necessidade dessa formalidade
técnica. Mas a sua adoção tem um
quê de surreal. Quando se estudam
os efeitos de uma droga desconhecida se separam dois grupos, um que
toma a substância e outro que recebe placebo. O objetivo é verificar,
depois, se eventuais efeitos positivos decorreram mesmo da droga.
No caso das favelas, que dúvida pode existir?As que recebem investimento público, em qualquer medida, terão sempre mais efeitos positivos. Mas o estudo compara os dois
grupos para demonstrar o óbvio e
dar ao favela-bairro uma eficácia
que ele não tem.
Comparando-se as favelas que receberam os investimentos com elas mesmas antes das obras, verifica-se que o
desempenho foi muito aquém do imaginado. Os domicílios ligados à rede geral de água tiveram crescimento de 14
pontos percentuais, ou 17%; os domicí-
lios ligados à rede geral de esgoto aumentaram 20 pontos percentuais, ou
32%; e os domicílios com serviços de
coleta de lixo cresceram 18 pontos percentuais, ou 23%. São dados da prefeitura. Evidentemente, o prefeito se mostra bastante orgulhoso desses números
e de uma maneira totalmente justificada: qualquer melhora deve ser extremamente comemorada. Mas depois de esperar 12 anos e investir US$ 600 milhões, a cidade merecia ter números
mais generosos.
É preciso encontrar soluções,
não paliativos. É preciso que a sociedade se indigne com a paisagem,
com a vida que leva uma multidão
de conterrâneos e se decida a mudar o quadro. Sem aceitar culpa de
quem deveria se sentir culpado.