"Freud", O Globo, 02/05/2006 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Freud", O Globo, 02/05/2006

No início da década de oitenta, li na porta de um banheiro da faculdade: "Deus morreu; Marx morreu; Freud morreu; e eu mesmo não ando me sentindo muito bem." A piada já era velha na época, e a graça era o excesso de auto-estima do autor. Hoje, ela só é atual justamente pelo que o autor diz de si mesmo. Das quatro afirmações, a última guarda uma verdade: é eterno o nosso mal-estar diante do fato de que existimos. Deus nunca esteve tão vivo, tanto no Ocidente quanto no Oriente, pretexto freqüente para conflitos de todo tipo. Marx, apesar da derrocada dos regimes socialistas, ainda molda o jeito de pensar de uma grande parte de nós, e, por isso, continua a fazer os estragos dos bem-intencionados. Freud, porém, não devia ter constado da lista. Sei que vou levar pedradas, mas Freud nunca esteve no campo das crenças. Mudou o mundo, mas no papel de cientista, ao descobrir, pela observação de si mesmo e de seus pacientes, os princípios básicos de nossa vida mental.

No elogio fúnebre diante do corpo do pensador em Londres, Stefan Zweig resumiu com emoção a importância de Freud: "Cada um de nós pensaria, julgaria, sentiria de maneira mais estreita, menos livre, menos justa, sem os pensamentos dele, sem aquele grande ímpeto para dentro do ser que ele nos legou."

A primeira vez que li "A interpretação dos sonhos", foi uma descoberta: o leitor pode ser o seu próprio campo de provas. Por muito tempo, adquiri o hábito de presentear os amigos com exemplares do livro, um dos maiores que a Humanidade já produziu. Freud tem uma obra monumental, além de ser um grande escritor, acessível a todos nós, leigos. Mas, desde o início, sempre enfrentou resistências enormes. Se a própria idéia do inconsciente já era em si escandalosa — um "eu" que o próprio eu desconhece — o que dizer do postulado de que existe uma sexualidade infantil e que a origem das neuroses dos adultos reside em sua vida sexual quando criança? Da mesma forma, era tão inovador quanto repulsivo estabelecer que os sonhos são a representação da satisfação de um desejo, e que a sua interpretação pode ser a ponte entre o adulto e a vida infantil que ficou recalcada. Para voltar ao campo das velhas piadas, depois de Freud, nenhuma senhora de família pôde mais sonhar em paz.

Não foi à toa que as primeiras dissidências se deram em torno da recusa desses postulados. Adler, Jung, Otto Rank, cada um a seu modo, filtraram a psicanálise de seus pilares mais incômodos e criaram suas próprias "psicanálises". Apesar de saber que seu caminho poderia até ser mais suave sem aquelas questões incômodas, Freud prontamente rechaçou a todos. E no texto "História do movimento psicanalítico" disse com todas as letras que ninguém melhor do que ele para saber o que era e o que não era psicanálise.

O problema é que há quase 70 anos essa autoridade não existe mais. E aos pontos espinhosos da psicanálise, somou-se, cada vez mais acentuadamente, mais este: quem, de fato, é psicanalista?

A psicanálise, aqui como na maior parte do mundo, não é regulamentada pelo Estado. A conseqüência disso é que qualquer um pode se estabelecer como psicanalista. Se alguém disser que é psicólogo, e não for, vai preso, por exercício ilegal da profissão, mas se disser que é psicanalista, e não tiver o devido conhecimento, dificilmente poderá ser alcançado pela lei. Para o Estado brasileiro (e para a maioria), a psicanálise não existe.

Não, a solução não é regulamentá-la .
Freud sempre foi favorável a que todos com aptidão — e não somente os médicos — pudessem praticar a psicanálise, mas desde que se formassem adequadamente. No Brasil, até alguns anos atrás, o esquema era mais draconiano do que aquele proposto por Freud: as duas sociedades psicanalíticas reconhecidas pela Internacional Psychoanalytical Association (IPA), fundada por Freud, só aceitavam médicos para formação. Mais tarde, as duas instituições passaram a aceitar os psicólogos. Todo esse processo, porém, passava ao largo do Estado. Não existia controle algum, mas a coisa funcionava. No final da década de 70, homens como Hélio Pelegrino e Eduardo Mascarenhas iniciaram uma campanha contra o que chamavam de autoritarismo das duas sociedades de psicanálise ligadas à IPA. O analista-didata, que autorizava o iniciante a clinicar, passou a ser xingado de "barão da psicanálise", e um clamor por liberdade inundou a imprensa. Hélio e Eduardo foram expulsos, e, depois, o que se viu foi a proliferação de escolas independentes de psicanálise, boas e más. Nas más, nenhuma exigência é feita: para freqüentá-las, às vezes em cursos noturnos suaves, às segundas, quartas e sextas, basta o interesse de cada um.

O resultado é que há de tudo em boa parte dos consultórios hoje em dia, menos psicanálise: muitos se transformaram em consultórios sentimentais, onde os pacientes vão contar os seus dramas e saem de lá com conselhos, dicas, reprimendas, nada mais antipsicanálise. Não conheço um analisando que tenha ouvido de seu analista as regras básicas da psicanálise, como devem proceder no consultório, o que é a livre associação de idéias, o que é a técnica, o que esperar dos resultados.

Alguns alegam que não há o que fazer: ninguém mais tem condições de dizer o que é certo e o que é o errado. Para piorar, alguns evangélicos decidiram que eles vão regulamentar a profissão e usam agora a força de sua bancada no Congresso para fazer tramitar um projeto de lei. Contra o qual, ainda bem, todos se unem, os bons e maus psicanalistas.

O problema é de difícil solução. Eu acredito numa auto-regulamentação proposta e levada a cabo por psicanalistas fiéis à herança intelectual de Freud. As escolas piratas continuariam a existir, mas a falta de legitimidade seria evidente. Será isso possível? Com a palavra, os psicanalistas.

No momento em que se comemoram os 150 anos de nascimento de Freud (no próximo dia seis), creio que este é um bom tema para reflexão.