No início da década de oitenta, li na porta de um banheiro da faculdade: "Deus morreu; Marx morreu; Freud
morreu; e eu mesmo não ando me
sentindo muito bem." A piada já era
velha na época, e a graça era o excesso de auto-estima do autor. Hoje, ela
só é atual justamente pelo que o autor
diz de si mesmo. Das quatro afirmações, a última guarda uma verdade: é
eterno o nosso mal-estar diante do fato de que existimos. Deus nunca esteve tão vivo, tanto no Ocidente quanto
no Oriente, pretexto freqüente para
conflitos de todo tipo. Marx, apesar
da derrocada dos regimes socialistas,
ainda molda o jeito de pensar de uma
grande parte de nós, e, por isso, continua a fazer os estragos dos bem-intencionados. Freud, porém, não devia
ter constado da lista. Sei que vou levar
pedradas, mas Freud nunca esteve no
campo das crenças. Mudou o mundo,
mas no papel de cientista, ao descobrir, pela observação de si mesmo e
de seus pacientes, os princípios básicos de nossa vida mental.
No elogio fúnebre diante do corpo
do pensador em Londres, Stefan
Zweig resumiu com emoção a importância de Freud: "Cada um de nós
pensaria, julgaria, sentiria de maneira mais estreita, menos livre, menos
justa, sem os pensamentos dele, sem
aquele grande ímpeto para dentro
do ser que ele nos legou."
A primeira vez que li "A interpretação dos sonhos", foi uma descoberta:
o leitor pode ser o seu próprio campo
de provas. Por muito tempo, adquiri o hábito de presentear os amigos com
exemplares do livro, um dos maiores
que a Humanidade já produziu. Freud
tem uma obra monumental, além de
ser um grande escritor, acessível a todos nós, leigos. Mas, desde o início,
sempre enfrentou resistências enormes. Se a própria idéia do inconsciente
já era em si escandalosa — um "eu"
que o próprio eu desconhece — o que
dizer do postulado de que existe uma
sexualidade infantil e que a origem das
neuroses dos adultos reside em sua vida sexual quando criança? Da mesma
forma, era tão inovador quanto repulsivo estabelecer que os sonhos são a
representação da satisfação de um desejo, e que a sua interpretação pode
ser a ponte entre o adulto e a vida infantil que ficou recalcada. Para voltar
ao campo das velhas piadas, depois de
Freud, nenhuma senhora de família pôde mais sonhar em paz.
Não foi à toa que as primeiras dissidências se deram em torno da recusa
desses postulados. Adler, Jung, Otto
Rank, cada um a seu modo, filtraram a
psicanálise de seus pilares mais incômodos e criaram suas próprias "psicanálises". Apesar de saber que seu caminho poderia até ser mais suave sem
aquelas questões incômodas, Freud
prontamente rechaçou a todos. E no
texto "História do movimento psicanalítico" disse com todas as letras que
ninguém melhor do que ele para saber
o que era e o que não era psicanálise.
O problema é que há quase 70
anos essa autoridade não existe
mais. E aos pontos espinhosos da
psicanálise, somou-se, cada vez
mais acentuadamente, mais este:
quem, de fato, é psicanalista?
A psicanálise, aqui como na maior
parte do mundo, não é regulamentada
pelo Estado. A conseqüência disso é
que qualquer um pode se estabelecer
como psicanalista. Se alguém disser
que é psicólogo, e não for, vai preso,
por exercício ilegal da profissão, mas
se disser que é psicanalista, e não tiver
o devido conhecimento, dificilmente
poderá ser alcançado pela lei. Para o
Estado brasileiro (e para a maioria), a
psicanálise não existe.
Não, a solução não é regulamentá-la .
Freud sempre foi favorável a que todos com aptidão — e não somente os
médicos — pudessem praticar a psicanálise, mas desde que se formassem
adequadamente. No Brasil, até alguns
anos atrás, o esquema era mais draconiano do que aquele proposto por
Freud: as duas sociedades psicanalíticas reconhecidas pela Internacional
Psychoanalytical Association (IPA),
fundada por Freud, só aceitavam médicos para formação. Mais tarde, as
duas instituições passaram a aceitar
os psicólogos. Todo esse processo, porém, passava ao largo do Estado. Não
existia controle algum, mas a coisa funcionava. No final da década de 70, homens como Hélio Pelegrino e Eduardo
Mascarenhas iniciaram uma campanha contra o que chamavam de autoritarismo das duas sociedades de psicanálise ligadas à IPA. O analista-didata, que autorizava o iniciante a clinicar,
passou a ser xingado de "barão da psicanálise", e um clamor por liberdade
inundou a imprensa. Hélio e Eduardo
foram expulsos, e, depois, o que se viu
foi a proliferação de escolas independentes de psicanálise, boas e más. Nas
más, nenhuma exigência é feita: para
freqüentá-las, às vezes em cursos noturnos suaves, às segundas, quartas e
sextas, basta o interesse de cada um.
O resultado é que há de tudo em
boa parte dos consultórios hoje em
dia, menos psicanálise: muitos se
transformaram em consultórios sentimentais, onde os pacientes vão
contar os seus dramas e saem de lá
com conselhos, dicas, reprimendas,
nada mais antipsicanálise. Não conheço um analisando que tenha ouvido de seu analista as regras básicas da psicanálise, como devem proceder no consultório, o que é a livre
associação de idéias, o que é a técnica, o que esperar dos resultados.
Alguns alegam que não há o que fazer: ninguém mais tem condições de
dizer o que é certo e o que é o errado.
Para piorar, alguns evangélicos decidiram que eles vão regulamentar a
profissão e usam agora a força de sua
bancada no Congresso para fazer tramitar um projeto de lei. Contra o
qual, ainda bem, todos se unem, os
bons e maus psicanalistas.
O problema é de difícil solução. Eu
acredito numa auto-regulamentação
proposta e levada a cabo por psicanalistas fiéis à herança intelectual de
Freud. As escolas piratas continuariam
a existir, mas a falta de legitimidade seria evidente. Será isso possível? Com a
palavra, os psicanalistas.
No momento em que se comemoram os 150 anos de nascimento de
Freud (no próximo dia seis), creio que
este é um bom tema para reflexão.