Em excelente reportagem de
Fernando Canzian, na "Folha
de S.Paulo", Elieida de Oliveira,
de 27 anos, disse que não quer
de jeito nenhum trabalhar com a carteira assinada: teme deixar de receber
os R$ 80 do Bolsa Família e perder o direito de se aposentar aos 55 anos, como trabalhadora rural, sem precisar
contribuir para o INSS. Moradora de
Brejões, a 281 quilômetros de Salvador,
ela tem dois filhos e trabalha ilegalmente numa das fazendas da região. Ganha
R$ 225 por mês, quando poderia tirar,
pelo menos, o valor do salário mínimo,
R$ 350, se tivesse a carteira assinada. A
reportagem mostrou que, na região, os
maiores empregadores, corretamente
fustigados pela Delegacia Regional do
Trabalho, tentam contratar trabalhadores legalmente, mas não encontram
pretendentes. Como resultado, estão
substituindo o homem pela máquina:
em apenas uma fazenda, cinco mil trabalhadores foram substituídos por colheitadeiras, que são operadas por um
único homem. Elieida é apenas um entre muitos exemplos que o repórter encontrou. Todos com medo de serem "fichados", termo pejorativo que dão às
carteiras assinadas.
Elieida e pessoas como ela estão certas. Apesar de uma grande frustração
pela tragédia que a reportagem mostrou, tive ao menos esse consolo: comprovar mais uma vez que, rico ou pobre, todos agimos racionalmente, fazendo cálculos sobre o que é melhor para
o nosso futuro. Errado está o governo.
Têm direito ao Bolsa Família cidadãos
com renda per capita de até R$ 120. Como Elieida tem 2 filhos e é casada com
um homem incapacitado para o trabalho, se ela recebesse um salário mínimo, a renda per capita dela seria de R$
87,50 reais, o que a manteria entre as
elegíveis para o programa. Ao saber disso, o governo disse que Elieida estava
desinformada. Prefiro achar que ela, ao
somar todas as rendas que tem, encontrou um número diferente do que divulga e resolveu não arriscar. De qualquer
modo, ela também já estava pensando,
aos 27 anos, na aposentadoria: se ela tiver a carteira assinada por um único
dia em toda a sua vida, terá de contribuir para o INSS por no mínimo 15 anos
para ter o direito de se aposentar aos
55 anos sem pagar nada em troca. Elieida pensa no futuro, e isso é bom.
Escandalosa é a solução que o governo encontrou para esta distorção: enviou ao Congresso um projeto de lei determinando que não perderá o direito à
aposentadoria especial o trabalhador
rural que tiver registro em carteira por
até 120 dias por ano, tempo que dura o
trabalho sazonal no campo. Ou seja,
em vez de acabar com a aposentadoria
especial tal como ela está posta hoje, o
governo propõe uma medida no sentido de eternizá-la. Quando a Constituição de 88 a instituiu, seu objetivo, acertadamente, era dar conta de uma massa de trabalhadores que, ao longo de vidas inteiras, deram seu suor no campo
sem carteira assinada e que, ao chegarem aos 55 anos, no caso das mulheres,
ou 60 anos, no caso dos homens, viamse sem direito algum. Quase vinte anos
depois, porém, é preciso modernizar o
campo, encontrando mecanismos que
estimulem o trabalho formal e a contribuição ao INSS por parte dos trabalhadores. Mas o que o governo faz é tornar
a coisa perene. Hoje, há 7,6 milhões de
trabalhadores rurais na ativa e 7,15 milhões deles aposentados. As contribui-
ções recolhidas são suficientes para fazer frente a apenas 13% das despesas
com aposentadorias rurais.
A aposentadoria urbana por idade é
também algo de surreal. Hoje, qualquer
um pode se aposentar aos 60 anos, se
for mulher, e aos 65, se for homem, desde que tenha contribuído por 13 anos
(em 2011, o tempo mínimo será de 15
anos). Ocorre que a Lei Orgânica da Assistência Social (Loas) estabelece que
todos, aos 65, com renda per capita inferior a um quarto de salário mínimo,
têm direito a um benefício de um salá-
rio mínimo (e, segundo a lei 2.720, não é
preciso comprovar renda). As duas leis
são incongruentes. Quem, na baixa renda, vai querer contribuir por 15 anos
para ter uma aposentadoria com valor
próximo ao do mínimo, se sabe que aos
65 anos terá um benefício parecido
mesmo sem contribuir?
E o presidente Lula ainda repete
que a Previdência não precisa de reformas.
O curioso é que outra excelente reportagem de Bruno Dalvi, Isabela Martin, Efren Ribeiro, Helena Frasão e Ismael Machado, publicada no GLOBO, já
tinha revelado outro aspecto do que
vem acontecendo: trabalhadores também largaram o subemprego (lavar
roupa para fora, carregar sacos de farinha no mercado, empregos domésticos sem carteira assinada) porque o dinheiro do Bolsa Família passou a ser
suficiente. O dado positivo é que o Bolsa Família tem ajudado a acabar com o
trabalho indigno, mas me pergunto: por
que será que esses cidadãos não quiseram somar ao Bolsa Família o dinheiro que antes vinha daqueles bicos e
que poderia até dobrar a renda? Das
duas, uma: ou são desprovidos de ambição ou a vida no país não está tão cara, qualquer dinheiro serve.
Seja o que for, não é boa notícia. O
governo tem gastado R$ 9 bi com o Bolsa Família, mantendo a retórica de que
o programa se destina a matar a fome
dos brasileiros, quando pesquisas oficiais já demonstram que a fome não
tem mais esse tamanho todo. Enquanto
isso, a educação continua uma falsa
prioridade: o Fundeb, que atuará em todo o ensino básico, apenas ao fim de
quatro anos significará investimentos
novos da ordem de R$ 4,5 bi, metade
do que vai para o Bolsa Família. E o resultado continuará sendo este que as
estatísticas do Censo Escolar de 2006
mostram: 75% das escolas de ensino
fundamental no Brasil não têm sequer
biblioteca, 91% não têm laboratório de
ciências, 80% não têm sala de vídeo,
62% não têm computadores, 83% não
têm laboratório de informática e 80%
não têm acesso à internet.
Sem educação, este país vai continuar o mesmo. Elieidas, ainda aos 27
anos, vão continuar dependendo do
Bolsa Família e se recusando a ter carteira assinada, sonhando com o dia em
que se aposentarão sem ter contribuído para a Previdência.